Sem final feliz
CORA RÓNAI
O GLOBO - 17/03/11
á ia um preocupado com o aluguel, o outro com os filhos, um terceiro com o emprego; numa casa a geladeira quebrada, na outra as obras quase prontas; um casal apaixonado, o outro convivendo com o ódio surdo dos anos; uma mulher que não cabia em si de felicidade ao descobrir que ia ser mãe, outra desesperada pelo mesmo motivo; um rapaz com a primeira moto, uma moça com as roupas novas, uma criança entediada com os brinquedos velhos, outra fascinada com um game novo; um homem arrasado com um diagnóstico sem remédio, outro recuperado de uma cirurgia; uma avó comprando verduras no mercado para o jantar da família, outra buscando os netos na escola, um marceneiro aborrecido com um calote, uma professora feliz com o progresso dos alunos, um carteiro entregando a correspondência. Vendedores vendendo, compradores comprando, dinheiro trocando de mãos, pequenas trivialidades cotidianas, como pontos numa tapeçaria.
De repente, uma onda gigantesca sai do mar e acaba com tudo, alegrias e preocupações, felicidade e desespero, lucro e prejuízo, amor e ódio. Onde havia a engenhosa obra humana que é uma cidade em pleno funcionamento já não há nada, a não ser lama e escombros. A vida que sobrou precisa continuar; mas como se continua depois de ver o mundo acabar em dez minutos? Qual é a escala de valores que se aplica? O que passa a ser prioritário? A ideia de que a vida se reduz ao mínimo denominador comum, às necessidades mais imediatas, é suposição de quem vê a catástrofe de longe. Lá, em meio ao caos, é possível que nada tenha tanto valor quanto uma foto, uma carta, um recorte de jornal, provas materiais do que existiu um dia. Ou não. Haverá talvez quem incorpore a nova realidade e passe a imaginar que o que havia antes não passava de uma alucinação coletiva, um sonho ao contrário.
Ainda assim, a civilização e a educação, duas irmãs que fazem diferença, escaparam ilesas da tsunami. Não se verificaram roubos, saques ou ataques de histeria destinados às câmeras de TV. Foi um assombro para quem assistiu a tudo do outro lado do mundo e, com certeza, é um consolo para quem está lá, e não precisa acrescentar à já longa lista de vicissitudes o medo do seu semelhante. O Japão provou que o ser humano não precisa ser necessariamente violento, boçal e amoral. Resta saber quantos séculos mais nós precisaremos para alcançar este estágio.
A crise da OSB é um retrato fiel de como é tratada a cultura no Brasil: de cima para baixo, sem diálogo ou transparência. Como já sabem todos a essa altura, um belo dia o maestro e diretor artístico da orquestra (que em qualquer lugar civilizado do planeta seriam pessoas diferentes, mas aqui são uma só), achou por bem convocar os músicos para "avaliações de desempenho". Ora, músicos de orquestra são, pela própria função, avaliados com frequência pelo público e, sobretudo, pelo próprio regente, com quem ensaiam constantemente. Um maestro que pede uma "avaliação de desempenho" dos seus músicos está, no fundo, confessando-se incapaz de avaliá-los - ou buscando uma saída covarde para demitir desafetos.
Os músicos, mais ou menos como os povos dos países da rua árabe, revoltaram-se contra a tirania das provas, humilhantes para quem passa a vida ensaiando e tocando; a administração tenta defender um modelo autoritário indefensável; e, em consequência, os assinantes das séries programadas para os próximos meses terão de se conformar com a OSB Jovem, que é um conjunto simpático, porém sem responsabilidade para tanto - afinal, como o nome diz, é composta por jovens, que recebem uma bolsa modesta para ensaiar duas vezes por semana, dado que ainda não terminaram os estudos e têm outras obrigações a cumprir. Usar a OSB Jovem em concertos vendidos pela OSB é sacrificar além do dever os seus componentes e, acima de tudo, é submeter o público a um estelionato cultural e artístico.
A OSB pode não ser a melhor orquestra do mundo, mas é a orquestra que é. Não é dizer pouco. Tem 70 anos de tradição, tem músicos excelentes e, sim, tem seus altos e baixos; mas, curiosamente, os altos acontecem sempre que é regida por um bom maestro. Todos nós, cariocas que gostamos de música clássica, devemos a ela a lembrança de alguns concertos memoráveis.
Se o senhor Roberto Minczuk não está satisfeito com a orquestra que rege, que procure outra que o aceite, em vez de buscar formas torpes e dissimuladas para desfazer uma orquestra boa, digna e capaz.
Enquanto isso, em Campinas, apesar dos protestos de ambientalistas, foram assassinadas, na calada da noite, cerca de 15 capivaras, que viviam isoladas num lugar chamado Lago do Café. Segundo a prefeitura, que teve consentimento do Ibama para a chacina, parte do grupo era portador do carrapato estrela, transmissor de febre maculosa, doença frequentemente fatal para humanos.
Detalhe: quem transmite a doença são os carrapatos, não as capivaras. As capivaras, pelo tamanho, são apenas mais fáceis de exterminar. Depois de mortas, elas foram zelosamente tratadas com carrapaticida pelos funcionários da prefeitura.
A ordem dos acontecimentos seria uma piada de mau gosto se não tivesse levado à morte tantos animais inocentes. Mal comparando, é como se agora virasse moda matar político para exterminar a corrupção. Por menos simpatia que eu tenha pela classe, impõe-se antes o combate à corrupção, ainda que os políticos sejam seus principais vetores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário