Intervir ou não
CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SÃO PAULO - 17/03/11
Os injustiçados, mundo afora, esperam a chegada da cavalaria. E a cavalaria, bem ou mal, somos nós
NA FOLHA de 6 de março, um médico líbio, Mohammed Ahmad, entrevistado pelo correspondente Marcelo Ninio, desabafa: "É um massacre, estão atingindo civis, estão nos atacando de todas as direções. Por que a comunidade internacional não intervém?".
A Líbia é apenas um exemplo. A cada dia, junto com as notícias, chega até nós o grito dos que estão sendo perseguidos e exterminados, dos que apodrecem nas masmorras, dos que, indefesos diante de poderes abusivos e absolutos, estão sendo pisados, escravizados, torturados. Eles colocam sua última esperança na improvável chegada da cavalaria. E a cavalaria com a qual eles sonham, bem ou mal, somos nós -somos também nós.
Vamos brincar de Pôncio Pilatos? Ou vamos à luta pelos injustiçados que moram longe de nossa rua, de nosso país e de nossa cultura? E, nesse caso, quais injustiçados escolheremos?
Por temperamento, sou intervencionista -embora muito menos hoje do que no passado, talvez por confiar menos na minha força física. De qualquer forma, se vejo uma briga, tendo a me meter -para afastar os que estão brigando e também para tomar partido. Mas tomo partido como?
Admito que, na maioria das vezes em que decidi me meter, eu realmente não tinha como saber de que lado estava a razão. Por isso mesmo, os supostos "nobres" motivos de minha escolha permanecem sob suspeita. Por exemplo, escolhi o lado do mais fraco: é uma opção generosa, mas quem garante que o mais fraco tinha razão? E se, de fato, eu tivesse escolhido o lado dos que mais se pareciam comigo, como se a razão só pudesse estar com alguém que tivesse a minha cara?
A dificuldade de intervir decorre de contradições que são inseparáveis do próprio espírito da modernidade ocidental.
a) Acreditamos na universalidade da espécie humana; para nós, ser "homem" é mais importante do que pertencer a uma nação ou a uma etnia. Em tese, o que acontece na Líbia ou em Ruanda nos é próximo e nos concerne tanto quanto o que acontece no quintal de casa -portanto, interviremos, não é?
b) Certo, interviremos e pesaremos na balança em nome de nossos valores. Apoiaremos quem quer democracia e escutaremos o grito da mulher que tenta fugir de sua tribo porque não quer que seu sexo seja mutilado ou da adúltera que será apedrejada.
Mas o fato é que a defesa dos valores nos quais acreditamos será hesitante e, de uma certa forma, culpada pelo seguinte sofisma: se todos, por diferentes que sejam de nós, são tão homens quanto a gente, qual seria o mérito especial de nossos valores, salvo o mérito (duvidoso) de eles serem os nossos?
c) Desde o começo da modernidade, acreditamos também que o que acontece no mundo não é efeito da vontade divina, mas da ação dos homens. Por exemplo, não somos dominados pela Providência, mas pela vontade de tiranos contra quem podemos, portanto, nos rebelar.
Há uma contrapartida: assim que a razão moderna reconhece que tudo vem dos atos e das intenções dos indivíduos, ela se torna desconfiada e paranoica. Em suma, a notícia boa é que podemos modificar o curso da história, a notícia ruim é que somos sempre suspeitos de modificá-lo pelas piores razões.
Somos condenados a uma alternativa entre duas posições igualmente incômodas. Quem não intervém é um covarde que renega sua humanidade e deixa os indefesos sem defesa e os injustiçados sem justiça.
Quem intervém é provavelmente um aproveitador que, sob o manto de uma certa grandeza moral, está promovendo interesses escusos ou, no mínimo, impondo ao mundo seus valores particulares. Algumas consequências disso? Aqui vai.
Desde o sítio de Sarajevo, em 1992, até o massacre de Srebrenica em 1995, a imprensa ocidental denunciou a covardia das potências que não impediam o genocídio. Depois dos bombardeios da Otan em 1998, os mesmos comentaristas denunciaram o imperialismo das potências que se atreveram a intervir.
Se amanhã as botas dos soldados da Otan ou mesmo da Liga Árabe pisarem o chão da Líbia, aposto que Mohammed Ahmad será entre os primeiros a se indignar e eventualmente a lutar contra o ocupante estrangeiro.
Nota: Quem puder (o filme está em poucas salas, infelizmente) assista a "Restrepo", documentário de S. Junger e T. Hetherington. É uma extraordinária lição de sobriedade na hora de pensar em intervenções militares "civilizatórias".
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