Quando a infâmia compensa
CLÓVIS ROSSI
FOLHA DE SÃO PAULO - 12/03/11
Inação do mundo na Líbia chega à indecência; vive-se um festival de retórica e ameaças -e ação zero
JOSÉ Ignacio Torreblanca, pesquisador do Conselho Europeu de Relações Externas, exumou a Guerra Civil espanhola de 1936-1939 para tratar do caso da Líbia, em artigo para "El País".
Naquela época, a Liga das Nações, precursora da ONU, foi passiva ante um conflito em que "a legalidade e a legitimidade estavam de um lado, e a mera força bruta do outro". Ganhou, se ainda é preciso lembrar, a força bruta, comandada pelo general Francisco Franco, que instalou uma ditadura que durou até sua morte, em 1975.
Conclui Torreblanca: "Tanto a doutrina de não intervenção na Guerra Civil espanhola como o embargo de armas, que prejudicou especialmente o lado republicano, passaram à história da infâmia".
Pois é. O mundo dito civilizado está escrevendo, com sua insuportável inação na Líbia, mais um capítulo para a história da infâmia.
Afinal, em carta conjunta ao presidente do Conselho Europeu, Nicolas Sarkozy e David Cameron dizem que atos cometidos pelo ditador líbio "podem corresponder a crimes contra a humanidade".
E daí? A Europa, os Estados Unidos, as Nações Unidas vão assistir passivamente a mais um desses crimes, como antes em Ruanda, na Bósnia, em tantos outros lugares?
O fato de que agir é realmente uma decisão difícil não basta para atenuar a culpa pela omissão.
No caso da imposição de uma zona de exclusão aérea, que poderia ao menos reduzir a vantagem do tirano, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, lembra, com razão, que idêntica providência não impediu massacres nem no Iraque de Saddam Hussein nem pela Sérvia de Slobodan Milosevic.
Hillary esquece, no entanto, uma diferença talvez essencial: não havia nem no Iraque nem na Bósnia um movimento de libertação que buscasse ejetar os ditadores de plantão. Toda a ação era de forças estrangeiras, ao contrário do que ocorre agora.
Fica a nítida sensação de que ao Ocidente importa um pepino que morram árabes e muçulmanos. Afinal, quando morreram brancos (três) em uma discoteca de Berlim, em 1986, em ataque terrorista orquestrado por Gaddafi, o então presidente Ronald Reagan ordenou o bombardeio da Líbia.
Agora, fica esse festival de retórica, ameaças e reuniões -e ação zero. Se não quer ou não pode atuar por princípios, que o Ocidente ao menos reaja por interesse preventivo.
Como escreve Scott Stewart para o "site" geoestratégico Stratfor, a Líbia pode voltar a ser o ninho de terroristas que era quando do episódio da discoteca, entre outros. "O conflito na Líbia pode fornecer aos "jihadistas" mais espaço para operar do que o que gozaram em muitos anos", diz Stewart.
Reforça Christopher Boucek, pesquisador associado do Programa de Oriente Médio da fundação Carnegie: "Os islamitas libertados por Gaddafi e aqueles que escaparam da prisão durante a rebelião são agora capazes de operar em um ambiente de evaporação do controle do Estado, de abundantes depósitos de pequenas armas e de mal guardados estoques de agentes de guerra química".
O Ocidente vai somar a desídia à infâmia?
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