Nada inocentes
RUY CASTRO
FOLHA DE SÃO PAULO - 12/11/10
RIO DE JANEIRO - Fess Parker, o ator que interpretou o caçador Davy Crockett numa série produzida por Walt Disney para a TV americana nos anos 50, morreu em março último, e seus obituários ressaltaram o assombroso sucesso dos filmes: 40 milhões de telespectadores por semana, de 1954 a 1956, e um gigantesco merchandising em torno do personagem.
Durante anos, os garotos americanos obrigaram seus pais a comprar-lhes um chapéu de guaxinim, com rabicho e tudo, como o usado por Davy. Além dos mocassins, jaquetas de franjas e calças (tudo de couro), mochilas, rifles de brinquedo, machadinhas, quebra-cabeças, gibis, o disco com "The Ballad of Davy Crockett" e toda quinquilharia que se referisse ao herói.
Hoje, o herói já não o é tanto. Descobriu-se que Crockett, vivendo na floresta, não matava animais apenas para comer, mas esfolava-os -coatis, gambás, castores, alces, gamos e até ursos- às centenas, e vendia seus couros e peles para os intermediários que abasteciam os empórios. Vivia disso. E, de couro dos pés à cabeça, ele já era um comercial de si próprio.
Sem saber que incidia em pecado, a série também mostrava Crockett como matador de índios e feroz perseguidor dos mexicanos que ousavam conspurcar o solo dos EUA. Enfim, agora descobrimos que, aos olhos do politicamente correto, não podia haver personagem pior.
Até morrer, em 1966, Walt Disney (o Monteiro Lobato americano, só que ao cubo em matéria de negócios) nunca se preocupou com isso. Os meninos que idolatravam a série também não reparavam nas maldades de Davy. Da mesma forma, os milhões de brasileiros inocentes que lemos Lobato em criança nunca nos demos conta de que Tia Nastácia vivia sendo humilhada pelo autor. Tivemos de esperar 50 anos para que adultos de hoje, mais perspicazes e nada inocentes, finalmente nos informassem disso.
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