O dia seguinte
Miriam Leitão
O Globo - 30/11/2010
É emblemático que o símbolo da conquista seja uma bandeira brasileira numa obra do governo. O teleférico é do PAC, o PAC é do governo. A bandeira ser o retrato da reconquista exibe a ambiguidade da situação. Mas nunca tivemos tanta chance de enfrentar nossas contradições e vencer uma forma de organização da economia do crime no Rio que incluía o controle territorial.
O Rio sonhou muito com este momento. Foi um avanço quando todos passaram a entender que os bandidos tiranizam as populações locais. Parece simples agora que o conceito se firmou, mas por muito tempo havia desvios na forma de pensar o problema das áreas do Rio onde o crime se instalou. Os governos sempre pediram licença às “autoridades” locais para entrar, o que significava legitimá-las. Por isso a palavra “libertação” se justifica. Depois da euforia, é hora de pensar com racionalidade os passos seguintes, os dias seguintes.
O que apareceu até agora foram os frutos do crime: um enorme volume de drogas e de armas apreendidas. Sabese pouco do paradeiro dos chefes. A Polícia e as Forças Armadas ocuparam o terreno para estrangular fisicamente o tráfico, mas os canais financeiros que alimentam o negócio continuam abertos. É uma atividade que gera muito dinheiro e muito desses recursos acaba circulando pelo sistema bancário.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e o Banco Central foram importantes quando se combateu o PCC em São Paulo. As pessoas ligadas direta ou indiretamente ao crime precisam ter suas movimentações financeiras analisadas cuidadosamente pelo Coaf, cuja função é esta mesma. O órgão não faz trabalho de campo. Ele analisa informações de movimentações financeiras suspeitas para evitar que dinheiro ilegal vire legal. Oficialmente, o Coaf tem que ser informado apenas de movimentações acima de R$ 100 mil. No caso do tráfico, há milhares de depósitos de pequeno porte numa mesma conta. É mais difícil de flagrar. O órgão já está atento.
O tráfico é uma atividade econômica. Criminosa, bandida, mas que tem os mesmos elementos de qualquer outra: emprega, gera renda, tem uma logística de distribuição dos seus produtos, tem financiamento e mercado. Mesmo se por milagre todos os chefes do tráfico forem presos, outros tomarão seus lugares e a atividade econômica continuará. O economista Sérgio Besserman avalia que a vitória foi contra um dos absurdos, o maior deles:
— Os Estados Unidos gastam US$ 15 bilhões por ano lutando contra as drogas e estão perdendo. O que houve neste fim de semana foi uma vitória contra a lógica de controle territorial do crime que existe no Rio. Mesmo que em Los Angeles ou São Francisco circule mais droga do que aqui, os criminosos não são donos de partes da cidade. Quando o Estado aceita não entrar em uma área, ele passa a admitir tudo. Esse foi o sentido dessa vitória.
Como o Estado organizou as obras do PAC? Como as empreiteiras fazem seu trabalho? Que poder têm os bandidos sobre os trabalhadores contratados? Obviamente tudo foi feito com negociação ou anuência do tráfico, do contrário a Polícia não instalaria uma bandeira no teleférico como símbolo da libertação.
Nós vivemos agora a agradável sensação de alívio. Uma fortaleza que parecia inexpugnável foi conquistada com vários ineditismos, como a cooperação entre as forças do Estado. Foi um dia realmente histórico, mas para não perder a vitória é preciso dar os outros passos.
O secretário de Assistência Social, Ricardo Henriques, já tem pensado esse futuro. O PAC social tem projetos em andamento. Já beneficiou 2.700 famílias com novas casas e apartamentos, instalou uma escola de ensino médio de qualidade, fez uma UPA. Aquele morro que foi visto por todo mundo com os bandidos fugindo da Vila Cruzeiro para o Alemão será reflorestado para ser área de preservação ambiental. Com a UPP, chegará também a UPP Social, que vai olhar antes a realidade local.
— Cada comunidade tem uma realidade diferente. Pavão- Pavãozinho, Chapéu Mangueira são diferentes do Alemão — diz Ricardo Henriques.
O economista André Urani confirma essa ideia, lembrando que em algumas favelas da Zona Sul há uma economia no entorno. No Alemão, não.
— Em volta do Alemão é um cemitério industrial. E não adianta pensar em novas indústrias, porque as grandes cidades estão se desindustrializando. Lá, moram pequenos prestadores de serviços, pintor, a mulher que faz o sacolé (picolé em saco), o serralheiro. É um mundaréu de pequenas atividades órfãs. Não adianta querer formalizar tudo. Se a mulher do sacolé tiver que pagar pela luz do freezer — e o governo estadual ainda cobrar 40% de imposto sobre a luz — ela vai preferir a informalidade — diz Urani.
É preciso não esquecer que todas as favelas da Zona Oeste ainda estão sob o domínio das milícias, e que das 13 comunidades onde há UPP, só uma, a do Batan, foi tirada da milícia.
Os dados sobre o Alemão são pouco confiáveis, segundo Besserman, porque há uma subdeclaração. Moradores preferiam não dizer que são de lá pelo estigma do local. Agora, o Complexo será mais bem estudado.
Enfim, o desafio da vitória se multiplica e se bifurca como as ruelas do Alemão. Há muito a fazer no dia seguinte a uma vitória como essa. Mas que bom que chegou o dia seguinte.
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