Questão de tempo
Miriam Leitão
O Globo - 19/10/2010
Os franceses quando vão para as ruas costumam promover grandes ondas, então é melhor ficar atento. Desta vez, a fúria é menos contra a reforma da previdência e mais pelo momento econômico da Europa de baixo crescimento provocado pela crise financeira que estourou em 2008. A briga contra o adiamento da aposentadoria é uma luta perdida. É uma questão de tempo.
O mundo inteiro tem que fazer mudanças na previdência, cada um ajustando à sua realidade. A França tem uma expectativa de vida de 80 anos; a das mulheres é de 84 anos. É inevitável fazer ajustes. Alemanha e Inglaterra já fizeram mudanças na idade de aposentadoria para 67 e 66 anos. Com a população mundial vivendo mais, principalmente em países mais desenvolvidos, é inevitável haver ajuste para reduzir o custo previdenciário. A reforma que está tramitando no Senado francês parece inevitável num país que tem quase um quarto de sua população acima de 60 anos. Nesse sentido, o movimento é uma luta por uma causa perdida. Mas o que toda essa adesão demonstra é o grau de insatisfação hoje na Europa com a falta de emprego e crescimento, insatisfação que explode em xenofobia, manifestações contra o governo, e queda de popularidade dos governantes.
A França tem a fama de ser revolucionária, mas é sempre a mais refratária a mudanças.
O Brasil sabe desse conservadorismo na luta contra os subsídios à agricultura europeia. É a França que mais resiste. O país tem um mercado de trabalho mais inflexível, uma previdência cara, que tem sido mais lenta em mudar.
Neste momento, é mais difícil fazer qualquer mudança, porque o país está em crise. O déficit público é de 7,8% do PIB e a dívida pública, de 80% do PIB. O programa é cortar o déficit público e retomar o crescimento, este ano em 1,5%, mas mesmo assim a dívida deve continuar crescendo até 87% do PIB em 2012.
Tudo isso torna urgente o ajuste fiscal. Mas o aumento do desemprego torna tudo mais difícil. O economista Fábio Giambiagi disse ontem que a França perdeu o melhor momento.
— A inação acaba pagando seu preço, cedo ou tarde.
A França poderia ter feito essa mudança com tempo, com tranquilidade, e sem tanta tensão, quando os ventos sopravam a favor, mas os governos anteriores se curvaram à pressão dos sindicatos e renunciaram à reforma. Agora o país está tendo que encarar uma reforma relativamente rigorosa, que gera uma grande insatisfação, por não ter se preparado com antecedência para isso: O que a maioria dos países está discutindo é elevação da idade mínima de aposentadoria.
Segundo um estudo feito por Marcelo Abi-Ramia e Rogério Boueri, do Ipea, em 2006, poucos países não tinham até aquela data estabelecido idade mínima: Brasil, Argélia, Egito, Eslováquia, Nigéria e Turquia.
Esse assunto aguarda a pessoa que vai presidir o Brasil a partir de 2011, independentemente da abstração da atual campanha eleitoral, mais preocupada com problemas inventados, como a insistência de Dilma Rousseff em tratar como urgente a privatização dos anos 90, ou a compra de empresa de gás italiana em São Paulo. O candidato da oposição, José Serra, não ajuda nada. Na verdade, piora a qualidade do debate quando faz propostas eleitoreiras na área da previdência.
As promessas do candidato tucano de aumento do saláriomínimo para R$ 600 significam aumento de 11,5% em relação à proposta que está no orçamento de 2011, que é de R$ 538. E 40% dos benefícios previdenciários são ligados ao mínimo. Ele propõe também aumento de 10% para os aposentados em geral.
Isso também é mais do que está previsto no orçamento.
Essa promessa deve custar em torno de 0,5% do PIB, ou R$ 20 bilhões. Para sustentar essa proposta, Serra terá que dizer de onde vai tirar. O déficit da Previdência este ano até agora, só dos aposentados do setor privado, foi de R$ 41 bilhões.
O IBGE está nas ruas buscando os dados da nossa demografia. Os primeiros sinais indicam que estamos mudando mais rapidamente do que o imaginado. O mais sensato é começar a mudar as regras para evitar o impasse adiante. A pessoa que vencer as eleições encontrará a seguinte situação, na definição de Giambiagi: — Um país que está envelhecendo, mas onde os idosos se julgam injustiçados; um país que deveria poupar mais, mas onde a população quer consumir cada vez mais; um país com regras de aposentadoria generosas em relação aos padrões mundiais, mas onde as pessoas não querem contribuir mais tempo.
O governo teria que ser “pedagógico”, expor os números, diz o economista.
Tarefa ingrata. Aqui e em qualquer lugar.
A França enfrenta um problema a mais. O presidente Nicolas Sarkozy transformou o regime semipresidencial da França em presidencialismo puro. O primeiro-ministro, François Fillon, virou basicamente um assessor do presidente.
Sarkozy tem que enfrentar de frente todas as crises. E como tem tido crise para enfrentar: de escândalos, a briga com minorias étnicas, um déficit público explosivo e, agora, os cidadãos na rua. E quando os gauleses, ou seja, os franceses, vão para as ruas... tudo pode acontecer.
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