Os ânimos acirrados e o câmbio
Maria Cristina Frias
Folha de S.Paulo - 22/10/2010
O Real é uma das moedas mais valorizadas do mundo, governo e mercado travam guerra cambial e há cada vez mais claras pressões para que o próximo presidente, seja a cor que tiver, segure o crescimento da economia.
O Brasil de 2011 não vai despenalizar o aborto nem colocar na cadeia as quadrilhas que se movem no submundo dos partidos, mas dificilmente escapará de um corte de gastos.
A generosidade exibida pelos candidatos não coaduna com o cenário que se avizinha, mas o debate eleitoral insiste em ignorar o Brasil que virá. Como a pauta religiosa emite sinais de esgotamento, o tema da corrupção volta à tona com avidez suficiente para produzir imagens que deixem o resultado indefinido até a última hora.
A ausência de uma discussão substantiva sobre os rumos da política econômica ajuda a entender por que esta campanha produz asco em abundância, além de bolinhas de papel e balões de água. Um eleitor que não sabe como ficarão os reajustes do salário mínimo e da Previdência nem as medidas para conter a farra cambial externa também é tentado à radicalização de ânimos, como se viu nos últimos dias na campanha de rua de ambos os candidatos.
Depois que a escarradeira for tirada da sala é que a seriedade vai poder, finalmente, reinar. Os políticos sairão de cena para entrar os ministros, economistas e empresários. A política, já suficientemente desmoralizada na mediação de interesses, dará lugar à razão do mercado.
O Brasil faz sua primeira eleição presidencial desde a grande crise financeira mundial, mas o fato de o país ter escapado mais ou menos ileso parece ter aprofundado o divórcio entre interesse público e mercado.
Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Jessé Souza é um pensador radical, dedicado ao estudo desse divórcio. Vê uma campanha catastrófica em curso.
Em livro recém-lançado ("Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?" UFMG, outubro/2010) refuta a ideia de que o Brasil está prestes a se tornar um país de molde europeu com classe média dominante.
Dedicou seus últimos quatro anos a pesquisas empíricas junto aos emergentes. Concluiu que esses brasileiros cumprem jornadas diárias de 10 a 14 horas, têm dois ou mais empregos de dia e estudam à noite. Vivem para trabalhar e consumir um pouco daquilo a que não tinham acesso antes. Ao contrário da maioria dos pobres, que Souza chama provocativamente de ralé, essas pessoas vêm de famílias estruturadas sob a ética do trabalho duro e da perseverança. Têm pouco capital cultural incorporado e cultivam estilo de vida e padrão de consumo que mais os assemelham à mão de obra superexplorada da China e da Índia do que à classe média brasileira estabelecida.
Jessé Souza acha precipitada a conclusão de que os emergentes são suscetíveis à manipulação efetiva de suas crenças. Diz que a exploração de preconceitos religiosos segue a cartilha da novelização da política que retrata um país dividido entre mocinhos e bandidos.
Vê a infantilização do debate político como decorrente de um Estado demonizado como politiqueiro e corrupto por um mercado virtuoso. Atribui a essa dicotomia a matriz do debate público viciado. A corrupção estatal, aqui e alhures, tem como base interesses privados em que o noticiário da escandalogia sempre esbarra. Só para ficar nos escândalos da hora: Erenice Guerra caiu na boca do povo, mas dificilmente o leitor será capaz de citar o nome de uma única empresa beneficiada pelo tráfico de influência montado pela ex-ministra e por sua família no governo.
O combustível da dicotomia entre o Estado corrupto e o mercado eficiente, diz Souza, é a divisão da riqueza nacional entre os ganhos de capital (70%) e salários (30%). Os dois finalistas da disputa presidencial filiam-se a partidos que reivindicam cepa social-democrata, mas nos países europeus onde o modelo vigora, ainda que esmaecido, a relação entre capital e trabalho é inversa.
Esse Estado ineficiente e corrupto que ganha dramaticidade na campanha eleitoral escamoteia o que Jessé Souza, sem temer a pecha de antiquado, chama de luta de classes: o exército de babás, empregadas, faxineiras, porteiros, office-boys e motoboys que permitem à classe média dedicar seu tempo a trabalhos valorizados e bem pagos. "Isso não é luta de classes? Apenas porque não há piquetes, polícia e sangue nas ruas? Apenas porque essa dominação é silenciosa e aceita, dentre outras coisas, porque também eles, os humilhados e ofendidos, ouvem todo dia que o nosso único mal é a corrupção no Senado ou em algum órgão estatal?", indaga Souza em texto recente.
Essa é uma quimera que nem o voto-nulo-neutro-independente-secreto da utopia marinista se propunha a resgatar. Nenhum dos finalistas tampouco se dispõe a tirar essa poeira debaixo do armário, mas o debate embotado não permite sequer que se perceba onde a faxina é mais urgente.
A campanha chega ao fim sem que os meios de maior audiência da campanha - o horário eleitoral e os debates televisivos - consigam esclarecer como José Serra pretende dobrar o Bolsa Família, aumentar o salário mínimo para R$ 600, reajustar a Previdência e cortar impostos sobre salário, cesta básica e energia elétrica. O eleitor também se aproxima do segundo turno sem que Dilma Rousseff esclareça como o Brasil vai ser redimido pelos recursos do pré-sal se, até 2014, os recursos dessa exploração mal terão começado a pingar nos cofres nacionais.
Jessé Souza só perde em radicalidade para a vida real. Na manhã de terça-feira, uma dona de casa de classe média alta paulistana relatava e-mail que recebera. "A melhor coisa que vi nesta campanha", disse. Lá estava o valor das bolsas mais caras do mundo: Louis Vuitton de R$ 88 mil, Hermès de R$ 253 mil e Chanel por R$ 551 mil. No topo da lista lia-se: "Bolsa Família do governo Lula, feita com o mais puro couro da classe média brasileira - R$ 4 bilhões".
O Bolsa Família custa mais do que isso, mas a dona de casa estava com pressa para ouvir. Sua cozinheira havia se atrasado nesse dia.
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