A herança que pode salvar vidas
Kalil Rocha Abdalla
O Estado de S.Paulo - 11/08/10
Não é dizer muito nem simplesmente ser redundante atestar que as instituições filantrópicas no Brasil passam, ano após ano, por dificuldades financeiras e que ultrapassam esse período buscando sempre a colaboração e ajuda de pessoas de bem que se preocupam com os serviços prestados por essas instituições. A situação a que me refiro não passa longe das Santas Casas de Misericórdia de todo o País, que desde sua fundação original, em Portugal, no longínquo ano de 1498, se vêm valendo da ajuda e do socorro de filantropos e beneméritos.
Prestar serviço de atendimento à saúde pública no Brasil requer investimento e atuação constantes. No caso da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo não é diferente. Recebemos, até os dias atuais, legados de pessoas que, por algum motivo pessoal ou familiar, em seu testamento deixam para a Santa Casa alguma quantia em dinheiro ou, o mais comum, bens imóveis.
Desse modo, a Irmandade usa tais propriedades para obter fundos - na forma de aluguel ou venda - e investir no atendimento à população que recorre ao Sistema Único de Saúde (SUS), agregando esse valor ao repasse que a instituição recebe.
Mas, e quando as pessoas que não têm parentes são surpreendidas pela morte, nunca esperada, e não se precaveram, direcionando por testamento, que poderia ter sido público ou particular, os bens que possuíam para determinada pessoa ou entidade? Aí surge a figura da herança jacente, aquela em que não existem beneficiários, herdeiros ou legatários, ficando os bens sob a guarda, conservação e administração de uma pessoa designada pelo juiz responsável pelo inventário, denominada curadora, até que apareçam possíveis beneficiários ou, então, seja declarada sua vacância.
O não-aparecimento de herdeiros após o decurso do prazo legal obriga à conversão da herança jacente em herança vaga, ou seja, herança vacante, hipótese em que, após o advento da atual Carta Magna e da Lei n.º 8.049/90, os bens deixados pelo falecido devem ser transferidos para o município onde estão localizados.
Herança jacente e herança vacante são conceitos jurídicos para os dois fatos correspondentes: a morte do autor da herança e a eventual falta de herdeiros ou legatários para a ela se habilitarem. Se no prazo de um ano não se propuserem as medidas legais, a herança jacente converter-se-á em herança vacante.
A herança vacante é o reconhecimento, por sentença, ao final do procedimento de jacência, de que não existem herdeiros habilitados ao recebimento dos bens deixados. E pode ser ela arrecadada pelas universidades, se anterior ao ano de 1988, ou pelos municípios onde estiverem situados tais bens após essa data, quando foi promulgada a atual Constituição federal, sendo certo que a propriedade é resolúvel, porque o município somente adquire os bens em caráter definitivo após o transcurso de cinco anos contados a partir da abertura da sucessão hereditária, ocasião em que, surgindo algum herdeiro em linha reta, poderá ele ajuizar ação de petição de herança contra o município que os arrecadou.
Os bens arrecadados tanto pela Universidade quanto pela Municipalidade de São Paulo, em verdade, nunca foram corretamente administrados, estando grande parte deles invadida e ocupada pelos denominados "sem-teto" ou por indivíduos inescrupulosos que tentam assenhorear-se dos imóveis em apreço.
Diante da situação de precariedade vivida pelas Santas Casas, nada mais justo e correto do que transferir a posse, a titularidade e o domínio de tais bens para essas instituições nos respectivos municípios, sendo certo que, nas comunas onde não houver Santa Casa, os bens continuariam na posse das respectivas prefeituras, muito possivelmente, de pequenas cidades.
Para resumir, tenho por ideia buscar a cooperação de órgãos competentes e de direito para que esse trâmite seja alterado, passando as Santas Casas dos respectivos municípios a ser responsáveis e detentoras dos imóveis que se enquadrem nessa situação.
Administrando imóveis alugados e realizando a venda de alguns, devidamente autorizada pela mesa administrativa, que nada mais é do que o seu Conselho de Administração, a Santa Casa de São Paulo, por exemplo, conseguiu, com recursos próprios, fazer modificações em suas instalações, como, por exemplo, a reforma do centro cirúrgico, da UTI e de ambulatórios dentro do complexo do Hospital Central, na região central da cidade.
Em 2009, somente nos serviços de emergência e ambulatorial, passaram por todos os hospitais da Irmandade, administrados em parceria com as Prefeituras de São Paulo e Guarulhos e com o governo do Estado de São Paulo, mais de 1 milhão de pessoas nessas duas frentes de atendimento e mais de 1 milhão de exames patológicos. Estou falando única e exclusivamente de atendimento público do SUS, em nenhum momento do particular, que é feito por meio de convênio médico pelo Hospital Santa Isabel.
Como bem fazemos na administração de bens imóveis, revertendo os lucros em favor do atendimento à população, a alteração da lei, como estamos a postular, vai, sem a mínima dúvida, proporcionar-nos mais recursos e, assim, possibilitar a continuidade dos serviços médicos da Santa Casa de São Paulo, que tem como seu mote principal o atendimento ao carente e ao necessitado.
A oportunidade que se abre à nossa frente é propícia, posto que o projeto de revisão do Código Civil Brasileiro tem como relator o ilustre deputado Regis de Oliveira, que é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e tem amplo e pleno conhecimento dessa matéria.
ADVOGADO, É PROVEDOR DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE SÃO PAULO E DIRETOR JURÍDICO DO SÃO PAULO FUTEBOL CLUBEN
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