Banco Central e juros continua esquisito
Carlos Alberto Sardenberg
O Estado de S.Paulo - 02/08/10
Toda essa conversa sobre o que o Banco Central (BC) anda fazendo precisa começar com um reconhecimento: o BC prestou inestimável serviço ao País nestes quase oito anos da presidência de Henrique Meirelles. Dois números demonstram isso: Meirelles começou seu trabalho com uma taxa real de juros (descontada a inflação) em torno de 13% ao ano (a.a.). Hoje está em torno de 6%, ainda alta se comparada com outros países parecidos, mas a menor da história recente do Brasil.
Essa queda é ainda mais importante porque combinada com uma redução real da inflação. Claro, reduzir a taxa real de juros pela inflação mais alta não tem vantagem nenhuma. Quando iniciou seu mandato, em 2003, Meirelles pegou o IPCA (preços ao consumidor, do IBGE) na casa de 12% a.a. Hoje se discute se o índice, estourando a meta, vai a 5,5%. De novo, é maior do que em países emergentes próximos, mas o menor ao comparar o Brasil com o Brasil.
Além disso, Meirelles garantiu a atuação independente do BC, suportou o "fogo amigo" toda vez que aumentava os juros e, na crise de 2008/2009, a instituição tomou as medidas adequadas para garantir a firmeza do sistema bancário e a retomada do crédito. Ao longo do tempo, o presidente soube escolher economistas do primeiro time para compor a diretoria, profissionais que tiveram participação essencial em medidas cruciais, como a decisão de acumular reservas internacionais.
Em resumo, Meirelles herdou um regime de metas de inflação bem implantado e soube aperfeiçoá-lo. O BC brasileiro se tornou conhecido no meios internacionais como um óbvio caso de sucesso. Meirelles é o cara entre banqueiros centrais.
Claro, não faltaram críticas, sempre na mesma direção: o BC brasileiro seria excessivamente conservador, isso querendo dizer que a taxa básica de juros poderia ser menor do que a fixada pela instituição. A crítica partia tanto de economistas quanto de políticos, da oposição e do governo. Entre estes, reclamava-se de que o BC não poderia elevar a taxa em momentos políticos importantes para o governo. Meirelles respondia com dois argumentos. O primeiro, econômico: os juros reais, no médio prazo, estão claramente em queda. Esse processo só não é mais rápido por causa de outros fatores, como, principalmente, o pesado endividamento público. O segundo argumento era político: elevar taxa de juros não faz perder eleições; inflação em alta faz.
Por tudo isso, os analistas especializados em política monetária encaravam com naturalidade a combinação político-econômica do momento: o BC estava em pleno ciclo de alta de juros, para combater uma inflação derivada de um excessivo aquecimento da economia (consumindo mais do que produzindo), quando se iniciou a temporada eleitoral, numa disputa acirrada entre Dilma e Serra.
Este colunista não encontrou um analista sequer que considerasse a hipótese de o BC encerrar prematuramente o ciclo de alta de juros para ajudar a candidata de Lula. E esse ciclo parecia longo. Em abril o BC elevou a Selic de 8,75% para 9,5%. Em junho subiu para 10,25%. E quando se aproximava a reunião de 22 de julho, era quase unânime o entendimento de que a taxa iria a 11% e que ainda haveria mais duas altas, em setembro e outubro, com o ciclo terminando em 12% ou um pouco mais.
De repente, alguns dias antes da reunião de 22 de julho, começou um zunzunzum na praça. Tema: a economia do País estava desaquecendo muito rapidamente, a inflação corrente despencara, a recuperação mundial claudicava.
Reparem: não havia novidade. A desaceleração era esperada e, de fato, alguns indicadores caíam mais que o esperado. Mas outros permaneciam firmes, sugerindo a tese dominante, no BC e fora dele, de que a economia brasileira não poderia crescer o ano todo no ritmo chinês de 11,5% ao ano verificado no primeiro trimestre. Entendia-se, até ali, que haveria uma acomodação em nível elevado.
A novidade, portanto, não estava nos dados, mas nas informações, sempre reservadas, de que o BC estava mudando de opinião, abandonando as avaliações de seus últimos documentos (sobre o excesso de demanda em relação à oferta) e aderindo ao entendimento de que a desaceleração era muito, muito forte. Ou seja, o ciclo de alta de juros poderia ser mais curto e mais suave. Ou mesmo ser encerrado de imediato.
De novo, podia-se discutir a tese, mas as circunstâncias em que ela apareceu foram no mínimo estranhas. Um diz-que-diz-que às vésperas de uma reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) não era normal. Depois, essa "nova tese" do BC era a "velha tese" do ministro da Fazenda, Guido Mantega, para quem a alta de juros era inteiramente desnecessária. E, finalmente, políticos ligados ao presidente Lula e à candidata Dilma comentavam, sempre reservadamente, que Lula e Meirelles haviam decidido parar com a alta de juros. E, de fato, na reunião de 22 de julho o Copom aumentou os juros em apenas 0,5 ponto e indicou, formal e informalmente, que a alta poderia parar por aí. Por causa da tal mudança de cenário.
Qual foi a impressão passada? De que a decisão havia sido tomada no nível político e que agora se procuravam argumentos técnicos para justificá-la. Reparem de novo: os analistas, na grande maioria, se recusavam a admitir a tese política. Só topavam discutir os dados econômicos. Por isso todo mundo esperava ansioso a Ata do Copom divulgada na quinta-feira e explicando a decisão do dia 22.
E a Ata, francamente, decepcionou. Mesmo analistas que concordam com a ação do BC disseram que a coisa não estava bem explicada. O ponto: como o BC, conhecido pelas cuidadosas avaliações, poderia ter mudado de opinião tão rapidamente? Teria cometido um enorme equívoco ao sugerir, antes, um forte ciclo de alta dos juros? Estaria equivocado agora?
Acresce que a suspensão da alta dos juros cai como uma luva para a campanha de Dilma. Seu opositor é um constante crítico dos juros altos, "os maiores do mundo", e já vinha exercendo essa postura. Era um dos seus ataques prediletos. E é evidente que agora fica num corner. Muita gente pode criticar o BC por ter parado abruptamente a alta dos juros. Mas José Serra, não.
E como fica a moral do BC e de Meirelles? A ver. O fato é que têm muito capital para gastar. E uma segurada nos juros agora pode elevar a inflação, mas depois das eleições, a ser combatida com novo ciclo de alta no ano que vem. Seria outra herança eleitoral, além dos gastos públicos estourados.
O curioso é que o BC agora precisa torcer para que surjam dados desastrosos sobre a economia. Continua esquisito.
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