Tarde demais
RUY CASTRO
FOLHA DE SÃO PAULO - 17/07/10
Há anos, passando em frente a uma lavanderia da Lapa, algo me chamou a atenção: uma pilha de 50 ou 60 discos de 78 rpm no chão, na porta do estabelecimento. Velho fuçador de sebos, abaixei-me para examinar. O primeiro da pilha já era espetacular: um disco da gravadora Sinter, apresentando um choro no lado A e um bop do lado B. Intérpretes: Os melhores de 53.
E quem eram os melhores de 53? A lista vinha impressa no selo: entre outros, os saxofonistas Zé Bodega e Cipó; o trompetista Júlio Barbosa; o trombonista Nelsinho; o clarinetista Severino Araújo; o pianista Radamés Gnatalli; o baterista Luciano Perrone; e outro saxofonista, Paulo Moura. Em 1953, Paulo Moura tinha 20 anos, mas já podia sentar-se entre aqueles mestres. E o fato de o disco conter um choro e um tema puxado ao jazz indicava as duas direções de sua carreira.
Folheei os outros discos e nenhum me interessou. Perguntei ao homem do balcão se estavam à venda. Respondeu que eram de graça – desde que eu levasse todos. Não os jogara fora há mais tempo porque tivera pena, um deles poderia interessar a alguém. Não discuti. Fiz sinal para um táxi, e o motorista me ajudou no carreto das bolachas para o banco traseiro. Já Os Melhores de 53 foi a salvo comigo, preso pelas duas mãos e até hoje o tenho. Mas, agora, com um travo de remorso. Certa vez, falei desse disco ao próprio Paulo Moura. Ele disse que já não o tinha havia décadas e lamentava que nunca mais voltaria a escutá-lo. Prometi-lhe uma cópia, mas, com as idas e vindas da vida, o disco sumiu de minhas vistas. Estive com Paulo muitas vezes, e ele, elegantíssimo, nunca me cobrou. Eu é que me sentia em dívida. Pois, esta semana reencontrei o disco em casa, numa estante. E me comovi ao ler o título do choro – Agora é Tarde Demais – por que Paulo acabara de morrer.
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