Os rumos da TV a cabo
Gustavo Binenbojm
O Estado de S.Paulo - 08/07/10
Os serviços de TV a cabo destinam-se, por expressa determinação legal, a promover a diversidade de fontes de informação, o pluralismo político e o desenvolvimento econômico e social do País. Tendo como norte tais finalidades, a chamada Lei do Cabo (Lei n.º 8.977/95) procurou estruturar um mercado concorrencial, vedando a exclusividade em qualquer área de prestação do serviço, mas viável do ponto de vista econômico, mediante apropriação de economias de escala pelos operadores.
Assim foi que a Lei do Cabo e seu regulamento (Decreto n.º 2.206/97) optaram, claramente, por instituir uma competição pelo mercado, em vez de uma competição no mercado, entre os potenciais prestadores do serviço. Tal objetivo foi parcialmente alcançado por meio de licitações realizadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) até o ano 2000. Inúmeros prestadores foram selecionados mediante pagamento de elevados ágios sobre os preços fixados pela agência para a outorga dos direitos de exploração do serviço.
Entretanto, há uma década a Anatel não tem promovido licitações, ao argumento de que uma nova regulamentação para o setor estaria em discussão. Por isso causou surpresa e espécie medida cautelar concedida pela agência que suspendeu parte da regulamentação existente. Afinal, se uma nova regulamentação se encontrava em trâmite, não havia razão para a suspensão de normas anteriores, de maneira precária e açodada, no bojo do exame de uma fusão de duas empresas. De acordo com o artigo 214, II, da Lei Geral de Telecomunicações, "enquanto não for editada a nova regulamentação, as concessões, permissões e autorizações continuarão regidas pelos atuais regulamentos, normas e regras". Portanto, não havia como a Anatel suspender a eficácia das normas havia anos em vigor sobre TV a cabo sem a concomitante edição de um novo regulamento, até mesmo por razões de segurança jurídica.
A estranha decisão da Anatel, no essencial, prenuncia três diretrizes para o setor de TV a cabo:
Abandono das licitações para a seleção de novos prestadores do serviço;
fixação do preço da outorga do serviço pelo seu "custo administrativo" (isto é, um valor meramente simbólico), sem disputa entre os interessados;
e abertura indiscriminada do setor às concessionárias de telefonia fixa, a despeito da restrição imposta pelo artigo 15 da Lei do Cabo.
A desnecessidade das licitações seria, segundo a Anatel, o corolário de um regime de maior competitividade, no qual outorgas seriam concedidas a todos os eventuais interessados na prestação do serviço. Sem nenhum fundamento em estudos econométricos, a agência afirma a viabilidade da sobreposição ilimitada de redes de cabos, independentemente das dimensões e condições peculiares do mercado. Há óbices legais e econômicos a essa posição da Anatel. Do ponto de vista jurídico, a mudança do procedimento seletivo pressupunha a alteração da Lei do Cabo e do seu regulamento (que aludem claramente à necessidade de editais de licitação), competências pertencentes ao Congresso Nacional e ao presidente da República, respectivamente.
Sob o prisma econômico, é bem possível que a licitação e a consequente limitação do número de prestadores seja a melhor forma de regulação do serviço, tendo em vista outros interesses públicos legítimos, como a expansão do acesso à banda larga para populações de menor renda, mediante uso da plataforma de distribuição de TV a cabo. Para tal objetivo, todavia, a escala dos serviços poderá ser decisiva, a depender de um desenho regulatório inteligente, que alcance um ponto ótimo entre concorrência e ganhos de escala. De fato, sob determinadas condições e em determinados contextos, o excesso de competidores poderia comprometer não apenas o atendimento a outros objetivos de interesse público, como a própria prestação adequada e contínua do serviço, a preços razoáveis, aos assinantes.
De outra parte, não faz sentido que a Anatel renuncie às possíveis receitas geradas pelas licitações, sem nenhuma contrapartida dos prestadores. Apenas para se ter uma ideia, em licitação promovida em 1998 a agência arrecadou recursos da ordem de R$ 900 milhões pela concessão das outorgas. Em país em desenvolvimento, no qual a escassez de recursos públicos assume aspectos dramáticos, custa a crer que a Anatel possa, legitimamente, abrir mão de tais receitas para beneficiar empresas de distribuição de TV a cabo.
Por fim, a abertura indiscriminada do mercado às concessionárias de telefonia fixa, além de ignorar o sentido finalístico do artigo 15 da Lei do Cabo, cria o risco de formação de um grande monopólio no setor. A racionalidade do artigo 15 funda-se no colossal poder de mercado que seria conferido às concessionárias, em virtude da sua amplíssima infraestrutura já construída no País. Certamente, tal posição dominante dificultaria enormemente a subsistência dos concorrentes e a própria existência de novos entrantes. Assim, tal norma deve ser compreendida como medida de promoção e garantia da livre concorrência no setor.
Cumpre à Anatel conduzir o processo de discussão de um novo marco regulatório para o setor de TV a cabo de maneira aberta, transparente e democrática, permitindo a participação de todos os segmentos interessados da sociedade em nova consulta pública, diante dos novos aportes trazidos ao tema pela sua nova posição. Ademais, impõe-se a oitiva do Conselho de Comunicação Social, consoante o artigo 4.º, § 2.º, da Lei do Cabo. Colhidas todas as contribuições, todas críticas e todos comentários, caberá à agência avaliar as possibilidades e os limites do mercado de TV a cabo no Brasil, atentando para as balizas já traçadas pela lei e pela Constituição.
PROFESSOR DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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