O mundo pirou
Antonio Machado
CORREIO BRAZILIENSE - 24/07/10
Não é só aqui. Falta de respostas fáceis para a crise confunde os governos e economistas no mundo
Se até a semana passada o cenário de menor crescimento econômico e desinflação, assumido pelo Banco Central ao fixar a nova Selic, era estranho à maioria dos economistas brasileiros, imagine o que deve estar sendo para os profissionais da futurologia projetar os caminhos infinitamente mais complexos da economia global.
A bola de cristal tem errado todas. Já não se sabe mais se é a grande crise, detonada com o início da recessão nos EUA no fim de 2007 e tornada dramática com a quebra do Banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, que continua a assombrar. Ou se outras espocaram depois, ao se tornar impossível mantê-las ocultas, caso da Europa.
As contradições da união monetária eram sabidas desde a criação do euro, mas ninguém falava. Ou, ainda, se a crise que vai e vem é a mesma gestada pelas bolhas de especulação de ativos financeiros nos EUA e na Europa, reaparecendo aqui e ali em novas versões.
Nos EUA, ela poderia tomar a forma de recidiva, o chamado “duplo mergulho”, em que, depois de uma arrancada forte, a economia, tal qual cavalo paraguaio, volta a cair. Sabe-se pouco dessas coisas. A história registra uma ocorrência, na década de 1930, mas devido a um erro do governo de Franklin Roosevelt, ao retirar cedo demais os estímulos à economia, reavivando a recessão. O risco do double dip marcou as apresentações esta semana do presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, ao Congresso — e isso quando despontava o consenso, não inteiramente descartado, de que os EUA se distanciam da crise. Bernanke falou em cenário “excepcionalmente incerto”.
Incertas, no duro, são as sequelas das ações monetárias e fiscais dos governos, sobretudo da Europa e dos EUA, para resgatar a banca da insolvência e evitar a depressão à custa do bombeamento maciço de liquidez. Tais medidas legaram um explosivo endividamento público, cujo giro já compete no mercado financeiro com as necessidades de capitais do setor privado — e seu custo de juros sobrecarregará o orçamento fiscal e o contribuinte dos países avançados anos a fio.
Igualmente incerta é a continuidade do desbalanceamento entre os deficits dos EUA e as economias que os bancam — basicamente China, Japão, Alemanha, árabes produtores de petróleo e outros grandes emergentes, como Brasil, Índia e Rússia, no fim da fila.
Tais desequilíbrios ameaçam a sustentação do dólar como reserva de valor, e era o que destacava o euro — alternativa frustrada com a exposição da grave crise essencialmente fiscal e de ineficiência competitiva na União Europeia. E agora? Fazer o quê?
Bola de cristal rachou
A falta de respostas fáceis deixa a todos, sobretudo governantes dos países avançados, atônitos; confunde os economistas; paralisa o empresariado e a banca; e leva aos equívocos dos cenários. Não é a bola de cristal que ficou biruta. A economia é que mudou.
A teoria econômica e as fórmulas para operá-la de repente parecem não funcionar. Recessões anteriores se resolviam com gasto fiscal e laxismo monetário, se no mundo rico, ou com paulada no lombo, se em países pobres “assistidos” pelo FMI. Mas era só um ou outro. No máximo, pegava uma região, como a Ásia, em 1997 e em 1998.
Keynesianismo bastardo
Outra coisa é uma crise global, e não entre países fracos, mas no coração das economias avançadas — fonte dos fundos que abastecem a economia privada e as necessidades dos países emergentes. E não é só: a fórmula do grande John Keynes para tirar países do atoleiro via gastos fiscais tinha o objetivo de estimular a despesa privada por meio da distribuição de renda e investimentos públicos.
No desenho dos governos que recorreram ao keynesianismo, não há a criação de emprego emergencial gerado por grandes obras. Há apenas a troca de dívida privada por pública e subsídios à demanda por um consumidor endividado até a boca e alarmado, ou até desempregado.
Arruinando-se por nada
No fim, a impressão é que os governos dos EUA, da Europa e do Japão estão gastando o que não podem e não têm por nada. Até já se teme pelo esforço da China para manter a sua taxa de crescimento perto de dois dígitos, mas puxada pelo aumento da produção voltada para a exportação, não para o consumo interno — num país em que o gasto das famílias é da ordem de 30% do PIB. Vai a 70% nos EUA, e ainda não cedeu pela crise, e passa de 63% no Brasil, e está crescendo.
É o que o Banco Central tenta reduzir por cautela. Com o mundo de ponta cabeça, não espanta a profusão de bola fora. Lá e aqui. E a tendência é que as projeções sigam erráticas por muito mais tempo.
Mal sistêmico da crise
O esforço para reerguer as economias avançadas ainda está sujeito a acidente porque o mal sistêmico da crise continua longe da cura: a existência de uma gigantesca capacidade ociosa no mundo.
Ela fez sentido enquanto havia crédito farto como sucedâneo para a renda estagnada no mundo rico. O crédito ainda existe, mas os bancos hesitam emprestar a um consumidor que nem bem começou a se desendividar, além de se saber que o ajuste fiscal na Europa e nos EUA um dia terá de vir — e, quando vier, vai doer pra caramba.
As economias emergentes, como China e Brasil, superaram a crise sem maior trauma porque vinham ajustadas na marra desde a década passada. A questão é que o bolso da clientela externa está puído. O padrão de crescimento será outro. Mas qual? Ninguém sabe dizer.
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