Questão de princípios
JOÃO BERNARDO DE LIMA KAPPEN
O GLOBO - 28/06/10
O Tribunal Superior Eleitoral, ao reconhecer a validade da lei chamada de “ficha limpa”, demonstra que, mais uma vez, o impulso punitivo que domina o ambiente público é capaz de preterir princípios constitucionais caros ao estado democrático de direito brasileiro. O tribunal faz valer a máxima de que os fins justificam os meios, na medida em que aceita transgredir sólidos direitos fundamentais, com a justificativa de preservação dos interesses dos eleitores.
Os princípios constitucionais da irretroatividade da lei que cause prejuízo (questão levantada unicamente pelo corajoso e independente ministro Marco Aurélio) e da presunção de inocência passaram ao largo dos votos proferidos pelos ministros da corte eleitoral. Na repercussão do julgamento, houve quem dissesse que “quem misturasse direito penal com direito eleitoral, iria perder muito dinheiro com advogados”.
Infelizmente, pensamentos como este refletem certa cultura de desprezo às normas constitucionais, patente no Judiciário brasileiro.
Neste caso, não se trata de confronto entre leis de caráter penal e eleitoral, mas sim de violação direta à Constituição federal. E é impossível não misturar direito penal com direito eleitoral, posto que o critério de inelegibilidade estabelecido na lei da “ficha limpa” é justamente ter condenação no âmbito penal.
Desta forma, o direito eleitoral está importando um instituto do direito penal para tornar imbele o direito de os cidadãos se candidatarem a cargos políticos. Não há, pois, como afastar os princípios inerentes ao direito penal, seja ele material ou processual.
O problema é que se se admite que a condenação criminal, por si, acarreta a inelegibilidade, parte-se do pressuposto de que esta condenação não será jamais reformada, instituindo, assim, uma provisória presunção de culpa. Mas se a Constituição federal estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, então até que seja julgado o último recurso possível não se pode impor a quem quer que seja os efeitos de uma eventual condenação criminal, sob pena de prejuízos irreparáveis. E é exatamente isto que pretende a lei da “ficha limpa”, considerar previamente culpados aqueles que ainda podem ser absolvidos e estender a eles os efeitos (a inelegibilidade) de uma condenação que não é definitiva. A questão central que, como de costume, é empurrada para debaixo do tapete gira em torno do problema de como fazer para melhorar o nível dos nossos representantes nos poderes Legislativo e Executivo, sem que com isso tenhamos que atropelar o Direito posto.
E a solução, pelo menos aquela que passa pelo respeito aos princípios constitucionais de um estado de direito, parece estar na consciência do eleitor. Por que não fazemos campanha pela transparência e pelo voto consciente? Por que não apenas divulgar os antecedentes criminais dos candidatos, delegando ao povo a oportunidade de eleger ou não os representantes de suas escolhas? Será que precisamos judicializar a consciência popular? Neste imbróglio, caberá ao Supremo Tribunal Federal, único e verdadeiro guardião da Constituição federal, a palavra final, mas ficará sempre a dúvida: quem nos protegerá da bondade dos bons?
JOÃO BERNARDO DE LIMA KAPPEN é advogado.
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