Não vale a pena ser do bem?
Gaudêncio Torquato
O Estado de S.Paulo - 06/06/10
Falta ao País, neste momento, a visão de um general como Sun Tzu, o lendário personagem do livro A Arte da Guerra, adaptado por James Clavell. Chamado por Ho Lu, rei de Wu, para treinar seus exércitos, o militar, de pequena estatura física e grande estatura moral, recebeu a missão de provar, inicialmente, suas habilidades com o treinamento das 180 mulheres do palácio. Dividiu o grupo em duas companhias, comandadas pelas concubinas favoritas do soberano. Tinha de fazer as mulheres reagirem às ordens: "Sentido, direita volver, meia volta, esquerda volver." Gritou posição de sentido. As moças caíram na gargalhada. Sun Tzu, paciente, ensinou: "Se as ordens do comando não foram bastante claras, se não foram compreendidas, então a culpa é do general." Tentou novamente. O grupo esbaldava-se de tanto rir. O general continuou: "Se as ordens são claras e os soldados, mesmo assim, desobedecem, então a culpa é dos seus oficiais." Ordenou, então, que as comandantes das duas companhias fossem decapitadas. No alto do pavilhão, o rei tomou um susto. Chamou o general e disse: "Estamos muito contentes com sua capacidade. Mas não podemos nos privar de nossas duas companhias."
Pois é, por aqui as ordens também são claras: não se pode fazer propaganda eleitoral neste momento. Candidatos e partidos parecem não ouvir. As decisões dos juízes não deixam dúvida: ilícitos estão sendo cometidos. Mas as multas irrisórias e seguidas são vistas com desdém. Os infratores, em tom de deboche, exclamam: "Ganhei mais uma!" Não apareceu, até agora, nenhum general Sun Tzu para ordenar a decapitação de quem não quer se sujeitar ao peso da lei. Quem mais chegou às proximidades do velho militar chinês foi a vice-procuradora eleitoral, Sandra Cureau, que encaminhou parecer ao Tribunal Superior Eleitoral pedindo a cassação do deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP) por desvios cometidos na campanha de 2006. Mesmo diante de ameaças de punição mais rigorosa, os atores participam de cenas eleitorais abertas. Ou não acreditam em decisões fatais da Justiça, ou sabem que terão garantido, sob quaisquer circunstâncias, o direito de usar o longo percurso do Judiciário para jogar as decisões nas calendas.
A leitura que se faz é sombria: "A lei mostra que não tem força alguma para segurar a ilicitude eleitoral; quando a Justiça sinaliza que funciona mal, ela está dizendo para o político de bem que não vale a pena ser do bem." As enfáticas afirmações são de autoria do novo procurador regional eleitoral de São Paulo, Pedro Barbosa Pereira Neto, em entrevista a este jornal (31/5). Trata-se de uma das mais contundentes sentenças que um servidor público já fez sobre a Justiça. Os fatores que maculam o processo eleitoral, expostos por ele, levantam muitas hipóteses, entre as quais a de que candidatos, partidos, estruturas e normas atravessarão um corredor escuro até chegarem às urnas de outubro. A engrenagem montada para sujar o processo eleitoral vale-se de elementos que se fundem ou se complementam, um alimentando o outro, sendo inconsequente ajustar um parafuso e deixar outro solto. Veja-se o fator impunidade. Se os participantes sabem que não serão punidos com rigor, mas com "multas pífias", continuarão a cometer infração. O crime vale a pena. Afinal de contas, R$ 5 mil ou R$ 10 mil são quantias irrisórias. Basta anotar que 30 segundos em rede nacional, no horário nobre de uma grande emissora, custam em torno de R$ 400 mil. Os maiores partidos têm direito a 20 minutos por semestre.
Por que a impunidade impera? A lei não é suficientemente clara? Ela é, sim. Mas é incongruente com a realidade? Pode ser. Ante uma das mais acirradas campanhas vividas no País e dentro de um ano tipicamente eleitoral, é razoável dispor de uma legislação que coíba o palavrório, os palanques, os eventos e manifestações de candidatos e patrocinadores, mesmo que isso ocorra nos primeiros meses? Vale lembrar, ainda, que a legislação eleitoral é mutante, ganhando disposições diferentes a cada ciclo, e dessa forma adquire o carimbo de casuística. Ora, se essas questões têm relevância, deveriam ter sido equacionadas muito antes de os contendores entrarem na liça. Porém, se há uma legislação definindo regras, deveres e direitos, esta deve ser cumprida, sob pena de o País continuar a escancarar os buracos de sua fachada moral. É o caso de parodiar Sólon, a quem se perguntou se as leis que outorgara aos atenienses eram as melhores. O sábio grego respondeu: "Dei-lhes as melhores que eles podiam aguentar." Entre nós, a resposta poderia ser: "As melhores que os brasileiros podem burlar."
Há outra pista para desvendar a raiz da impunidade. O procurador Pedro Barbosa afirma que os tribunais interpretam as leis de modo liberal. A questão, nesse ponto, é muito mais complexa. Abriga a índole dos juízes e invade a seara cultural. A imbricação entre o terreno individual e o espaço da res publica é intensa em nossa cultura política, ensejando, evidentemente, leitura pródiga dos códigos. Nas entrelinhas, persiste o argumento de que parcela dos quadros jurídicos considera ter algum parentesco com o corpo político, a partir do processo de indicações e legitimações de perfis por detentores de mandatos. Se esticados, os fios do novelo revelam complexa trama. Não é de admirar, portanto, que as campanhas escudem figuras com fichas sujas e personagens que se ancoram no poder monetário para cooptar o voto.
Por último, não se deve acreditar que moral e ética, virtudes tão reclamadas pela sociedade, sejam fruto de leis. Como lembra Montesquieu, "quando uma República está corrompida, não se pode remediar nenhum dos males que nascem, a não ser eliminando a corrupção". Eliminar a corrupção implica, sobretudo, educar o povo, eliminar as desigualdades, banir a miséria. Tarefa para duas ou três gerações.
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