Crônica
REVISTA VEJA - RJ
Fernanda TorresDona Fernanda me ligou depois que leu minha última crônica para tentar me explicar definitivamente a profissão do meu avô, pai dela. Seu Vitorino, Vitório para os mais chegados, não era carpinteiro como eu afirmei, e sim modelador mecânico. Ela repete esse termo para mim desde que eu era criança, pensei em escrevê-lo, mas sempre o confundo com torneiro mecânico e tive receio de que pensassem que ele era bombeiro. Burrice da minha parte.
Quando minha bisavó Ana ficou viúva e precisou costurar bandeiras para sobreviver, internou meu avô, então com 7 anos, em um colégio do qual ele só saiu doze anos depois, praticamente sem ver a rua. Meu avô comia sem olhar para o lado e sem falar, resquício da educação severa do internato. Ele teve paralisia infantil e mancava quando andava, falta essa que transformou em ginga graciosa, que acompanhava com um leve cantarolar, um lari-lari inesquecível.
Seu Vitório fazia misérias com qualquer pedaço de madeira e tinha o impulso de consertar tudo o que estava quebrado. Era um ser apolíneo, doce, civilizado e amoroso. Batizou as três filhas com nomes começados em “A” para que fossem as primeiras da fila. Deixou-as ser o que bem quisessem na vida, sem nunca parar de idolatrá-las. Arlette, a mais velha, escolheu ser atriz e chegou a tirar carteira para circular na noite como as prostitutas; Aida, a do meio, virou dona de casa; e Áurea, a mais nova, mãe de santo no meio de uma família católica de origem italiana e portuguesa. Por seu tremendo sentimento de abandono e rejeição — a mãe internou somente ele, e não o irmão —, amou sua prole incondicionalmente. Era um ser profundamente espiritual; não religioso, espiritual.
No internato aprendeu carpintaria, marcenaria e finalmente o topo da pirâmide do ofício da madeira: a modelagem mecânica. Vitorino é o elo entre a Idade Média e a Revolução Industrial, entre o artesão e o operário especializado. Contratado pela Light, seu trabalho consistia em ler as plantas importadas do Canadá e conceber em madeira os moldes das peças de engrenagem para ser fundidos e utilizados na maquinaria da companhia de luz. Muitos dos velhos postes de fiação das ruas, cujas bases exibiam um refinado adorno, foram esculpidos por mãos como as do meu avô. Durante a II Guerra, quando a importação de produtos industriais foi interrompida, devido ao perigo crescente da rota marítima, operários com a sua capacidade talharam os protótipos reproduzidos em metal para que o Brasil continuasse a funcionar. Sem curso superior, artesãos como ele tinham de ter um conhecimento de matemática apurado, resultado de uma formação requintada, mistura de arte, técnica e sensibilidade. Vitorino foi o verdadeiro artista da família.
Apesar de eu jamais ter cursado faculdade, respeito e invejo quem completou doutorado e aprendeu a ordenar o mundo em um câmpus universitário. Mas noto, hoje, uma proliferação nefasta de universidades duvidosas que formam advogados, engenheiros, economistas e administradores sem a menor condição de gerir, construir ou defender os interesses de ninguém. É o comércio do canudo. E, por outro lado, não existe mais uma mão de obra qualificada como a do meu avô. Privilegia-se o doutor e não se dá valor ao técnico. O currículo escolar é lotado de teoremas, axiomas, robóticas, mitoses e mitocôndrias, tudo certo, tudo necessário, mas acredito que um menino recém-saído do ensino médio que tenha aprendido geometria através da carpintaria vá ter muito mais chance de emprego no mercado de trabalho do que o doutor mal preparado.
Salve o glorioso São José!
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