Se a imprensa quiser melhorar
EUGÊNIO BUCCI
O Estado de S.Paulo - 06/05/10
Na terça-feira passada, fui um dos expositores do seminário 5.ª Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Um pouco antes de mim, falou o jornalista Sidnei Basile, vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Abril. Em sua palestra, ele apontou alguns dos vícios mais graves da imprensa brasileira, como o de acusar alguém de crime com base em declarações de fontes que não são identificadas. Segundo Basile, o caminho para superar esses e vários outros problemas não passa por nenhuma lei, nem por atos do Estado. Passa pela autorregulação.
Cito um trecho: "Como satisfazer esse direito (o direito à informação, de que todo cidadão é titular) sem códigos de autorregulação que assegurem o direito de defesa de quem esteja sendo acusado? De que se ouçam as partes? De que se evitem ao máximo as acusações off the records? De que não se confunda o leitor, misturando, em um mesmo texto, opinião com notícia? De que não se obtenham notícias com o jornalista se fazendo passar por outra pessoa? De que não se vaze o conteúdo de fitas de áudio e vídeo sem antes explicar ao público os muitos cuidados que foram tomados para tentar obter as informações de muitas outras maneiras?" (A íntegra está em www.anj.org.br.)
De minha parte, estou de acordo com o diagnóstico. Se a imprensa quer melhorar, quer elevar sua credibilidade e atrair mais público, a autorregulação é seu próximo desafio. A razão é muito simples. A nossa experiência democrática já cuidou de demonstrar exaustivamente que leis não melhoram jornalismo nenhum. Só quem melhora a imprensa é a sociedade (em diálogo com seus jornais), independentemente do Estado.
A velha Lei de Imprensa (Lei Federal n.º 5.250, de 9 de fevereiro de 1967) foi sepultada no ano passado, finalmente. O STF declarou-a inconstitucional. O acórdão da decisão saiu no Diário de Justiça de 6 de novembro. As restrições que existiam na antiga lei não podem mais cercear a manifestação do pensamento ou o direito à informação. Nem elas nem quaisquer outras. É fato que ainda convivemos com sentenças judiciais que condenam jornais à censura prévia, como a que pesa sobre este jornal, impedido de informar seu leitor sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal. Mas, à luz da decisão do Supremo, esses desvios judiciais terão de se adequar ao entendimento do STF. Em suma, a autoridade estatal já não se pode arvorar em fiscal do jornalismo, sob nenhuma alegação. Quem cuida da imprensa são a sociedade e os jornalistas. O Estado não tem mais nada que ver com isso.
Em poucas palavras: melhorar os jornais, as revistas, os sites noticiosos e os noticiários de rádio e televisão é tarefa da sociedade. Não do governo, do Judiciário ou do Legislativo. Aí é que entra a autorregulação, cujo processo é necessariamente longo. Não existe autorregulação feita de rompante. Ela passa por pactos entre o órgão de imprensa, seu público e suas fontes, o que só se desenvolve com o tempo. Esses pactos que se traduzem em códigos de ética. Sim, códigos de ética. Os códigos explicitam valores e padrões de conduta e também deixam claros os direitos da audiência e os direitos das fontes dentro daquela publicação. Por isso podem ser úteis.
É verdade que já há jornais com códigos bastante difundidos, assim como há aqueles que têm sistemas próprios para receber e tratar as queixas da sociedade. Eles saíram na frente. A partir de agora, porém, esses mecanismos terão de se aperfeiçoar rapidamente. Códigos sucintos, simples e claros servirão de orientação para os profissionais e, ao mesmo tempo, de garantia para o leitor e as fontes.
Como e em que prazo os erros detectados serão corrigidos? Por incrível que pareça, isso ainda não é claro em várias publicações brasileiras. E quanto às fontes? Caso um entrevistado sinta que sua declaração foi distorcida, a quem ele poderá recorrer? Um leitor que pretende corrigir uma informação incorreta tem garantias de que sua carta será publicada? E o direito de resposta, como fica? Alguém acusado de uma ação imprópria, sem ter sido ouvido pela reportagem, pode pedir espaço para a sua defesa? Quem é o encarregado de receber e encaminhar sua reclamação? De quem ele terá a resposta? Em quanto tempo?
Fiquemos atentos a essas perguntas. No próximo período, vai crescer a pressão da sociedade para que elas sejam respondidas. Os órgãos de imprensa serão chamados a divulgar suas normas internas. A cada dia mais, o público vai verificar se elas são ou não são para valer.
Há um velho axioma que nos ensina: para resolver os problemas da liberdade de imprensa, só mais liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa é também liberdade do público - liberdade para que ele discuta as notícias que recebe, para que ele cobre providências. Pela internet, pelo celular, ele já participa da confecção do noticiário com palavras, sons e imagens. Agora, vai participar também da regulação ética dos veículos. Os veículos que souberem cativar e envolver o cidadão que participa vão se destacar, vão tomar a dianteira. Quem não se mancar vai sangrar em credibilidade até definhar.
A crise da imprensa, da qual tanto se fala, não se reduz a itens como custo do papel, da tinta, da distribuição. Ela é mais profunda que a tal revolução da era digital. Ela é uma crise de envelhecimento de uma fórmula que acreditava que o monólogo seria suficiente para informar (ou doutrinar?) a sociedade. Esse envelhecimento nos levou ao casamento da irrelevância com a irresponsabilidade. Eis o que temos de mudar.
Quando autoridades estatais querem "melhorar" o jornalismo por decreto, temos o liberticídio. Daqui por diante, se jornalistas continuarem a se recusar a avaliar em público o seu próprio ofício, teremos o suicídio.
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