A dieta da crise
Antonio Machado
CORREIO BRAZILIENSE - 08/05/10
Quem surfou na maionese global e está firme em meio à salada grega deve fechar a boca para evitar azia
A ressurgência da crise global na Europa, agora minando a dívida soberana dos países, adiciona questões omitidas durante a chamada “grande moderação” — quando o mundo viveu uma onda de prosperidade inédita desde a 2ª Guerra Mundial —, e ainda maltratadas depois da debacle de Wall Street, atribuída sobretudo aos excessos dos mercados.
É mais que isso. Excessiva foi a complacência geral do mundo com a permissividade monetária dos EUA desde a guerra do Vietnã. E ela continua, permitindo essa espécie de taxa de senhoriagem do dólar cobrada do comércio e das transações financeiras globais que faz a economia americana ser das poucas, no mundo rico, a já percorrer o caminho de volta da crise. E isso a despeito de tê-la provocada.
Complacência excessiva também houve na Europa do euro com os seus membros mais atrasados em relação à Alemanha, a maior economia da área e base da moeda comum, e à França. Grécia, Portugal, Espanha, Itália e Irlanda receberam dinheiro das economias mais fortes para com ele investir em infraestrutura e modernizar a economia.
A maioria o usou para embelezar as capitais com amplas avenidas e, graças à estabilidade desconhecida por eles trazida pela moeda forte, introduzir políticas liberais de salários e equiparar seus serviços de Estado ao padrão vigente nos vizinhos mais ricos. Viu-se que só a renda do turismo não faz a riqueza das nações.
Não se atentou para a construção de uma sólida base de produção. E quem o fez, como Irlanda e Espanha, priorizou o ramo de serviços — o outro modismo em processo de revisão pela crise. A agricultura foi praticamente largada, como se vê em Portugal. E a que continua não sobrevive sem subsídios, situação na França e Irlanda, não por acaso opositores a um tratado de livre comércio com o Mercosul que desmonte as barreiras que protegem a agropecuária nativa.
Os dois blocos o querem. Com a Europa de quatro, é difícil supor que o Brasil, sobretudo, tenha alguma vantagem nessa barganha. As uniões econômicas de países também estão questionadas pela crise.
O economista laureado com um Nobel Joseph Stiglitz afirma que o resultado é a explicitação da inviabilidade das uniões monetárias não acompanhadas de integração fiscal, com os governos nacionais abrindo mão de qualquer soberania. Teria de ser como nos EUA e no Brasil, federações de estados sem poder para emitir moeda, taxar a vizinhança e gastar como quiser. A Europa estaria pronta para tal?
Riqueza era sintética
Vai-se constatando que o maior choque atribuído à grande crise da economia global não é bem a descoberta de que a maior parte do que a fazia bombar era a riqueza financeira fabricada literalmente sem produção e sem trabalho pelo instrumento dos derivativos de ativos de crédito. Seu DNA era e é, pois não foram desarmados, sintético, sem nexo com a economia real. Servem para rodar o cassino global.
Eles continuam, mas diminuíram, o que bastou para a água baixar no oceano da economia e descobrir uma enorme capacidade ociosa em quase todos os setores industriais, do automobilístico ao têxtil.
Sem mocinho e bandido
É um problema grave, razão da tendência deflacionária na Europa, EUA, Japão. O governo Lula, que quer dar preferência comercial a países pobres, mas gigantes em produtos como têxteis, deveria se acautelar. Preocupar-se com a chegada de mais carros importados.
O mundo está como o viciado internado para curar a dependência de drogas e se descobre mais complicado do que supunha. É simplista a noção de que nesta crise há mocinhos e bandidos. Todos foram, e ainda são, uma coisa ou outra. Só depende do posto de observação.
Dependentes da crise
Hoje, muitos atacam o dólar, como virou regra nos convescotes dos Brics, de Brasil, Rússia, Índia e China. São, justamente, os países emergentes descolados do subdesenvolvimento quando a China revolve enriquecer, insinua-se aos EUA com sua mão de obra barata e ética zero com o meio ambiente e atrai as multinacionais americanas.
Atrás dela vieram os fornecedores de commodities, como o Brasil. No meio, os EUA bancados por todos, sobretudo a China, com os dólares emitidos para pagar seus deficits nesse bizarro intercâmbio.
E surge a grande questão: como livrar-se do dólar, se vem dele o capital de giro que movimenta a economia global, que para crescer precisa de mais dólares e assim dos deficits dos EUA, e da loucura dos mercados financeiros para forjar uma demanda inexistente, caso se restaure a normalidade? Moralidade, diriam muitos. Mas e daí?
Cuidado com bagulhos
Os emergentes que surfaram na maionese global e estão firmes em meio à salada grega, que logo pode misturar bacalhau, espaguete e paella, têm mais é que fechar a boca para evitar azia. Os que usaram a fartura de liquidez fabricada pelos mercados tal como se faz salsicha para investir em fábricas e infraestrutura devem é protegê-la, e cuidar de não receber mercadorias encalhadas.
Europa, EUA e também os emergentes enricados, como a China, estão cheios de bagulho para vender. Não é aqui que devem vir. A solução é estimular a renda em casa para aumentar o consumo doméstico.É a receita que falta à Grécia pela miopia da Europa rica. O que se vê é a aldeia global, no primeiro aperto sério, se fechar em si e não querer saber dos outros. Que o Brasil não cometa bobagens.
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