"Xingubras", uma aposta na incerteza
ROBERTO SMERALDI
FOLHA DE SÃO PAULO - 16/04/10
Convocar o leilão de Belo Monte às pressas foi decisão assumidamente política, e contraria o parecer formal da equipe técnica do Ibama
É IMPOSSÍVEL atestar a viabilidade econômica da usina de Belo Monte, no rio Xingu. É igualmente impossível atestar o contrário. Mas estamos às vésperas de um leilão que, num quadro de incerteza por decisões liminares da Justiça, comprometeria maciços recursos do contribuinte e trabalhador brasileiros, em detrimento de investimentos cuja viabilidade e interesse público seriam, ao contrário, garantidos.
Por exemplo, reduzir as enormes perdas na distribuição, como no caso paradoxal do "linhão" de Itaipu. Pelos dados disponíveis, o atual projeto é inviável, e um eventual plano B não é apenas desconhecido, mas expressamente negado pelo governo.
A hipótese pela qual a usina geraria 4,6 mil MW de energia firme depende da construção de outros quatro reservatórios a montante, com custos adicionais inestimados. Sem isso, a energia firme ficaria, em meses mais secos, entre 690 e 2,2 mil MW, dependendo de diferentes estudos disponíveis. Há também duas estimativas no meio, de 1,1 e 1,8 mil MW.
Apesar da margem de incerteza, todas elas tornariam o Valor Presente Líquido (VPL) do empreendimento negativo. Note-se que energia firme significa produção máxima contínua e ininterrupta, e não energia média: é como confundir renda média per capita com renda mínima.
Por outro lado, os impactos das barragens complementares parecem de natureza e tamanho inaceitáveis na sociedade contemporânea: o próprio governo nega terminantemente a hipótese de sua construção, sem, porém, assumir isso formalmente. Em suma, realiza um leilão deixando de fora aquilo que poderia tornar o investimento viável, e joga para governos futuros a incômoda escolha entre sacrificar mais recursos do contribuinte ou mais capital natural e social do país.
Também ficaram fora da conta as chamadas externalidades, ou seja, os próprios custos ambientais e sociais desta primeira fase.
Isso não é privilégio de Belo Monte, sendo procedimento padrão nas demais grandes obras do PAC, mas nesse caso elas seriam muito expressivas: passivos oriundos da realocação de dezenas de milhares de pessoas, da perda de biodiversidade, da emissão de gases estufa, do comprometimento da atividade pesqueira, dos custos sociais para atender o fluxo populacional para a região, entre outros. Para dar uma ideia, trata-se de secar 100 km do curso de um enorme rio e afetar pelo menos 100 mil pessoas, com cerca de 30 mil a serem realocadas.
Tais custos deveriam ser bancados pelo mesmo poder público que também bancaria o resto da obra, com recursos do Tesouro Nacional, do Fundo de Amparo do Trabalhador e de fundos de pensão das estatais. Ao incorporá-los, o VPL da obra se tornaria ainda mais negativo.
Prova é que esta usina nunca seria construída se dependesse do setor privado assumir o risco: jamais empresas aceitariam se engajar em um empreendimento que nem sequer demonstra capacidade de remunerar o investidor. Por essa razão, no caso de Belo Monte o subsídio público teria de abranger tudo: obra, empreendedor e tarifa.
A decisão de convocar o leilão às pressas foi assumidamente política: contraria o parecer formal da equipe técnica do Ibama, que havia atestado a impossibilidade de conceder a licença, assim como as advertências do Tribunal de Contas da União.
Este apontou para inúmeras falhas, como o fato de que "estudos cartográficos possuem elevados níveis de incerteza, incompatíveis com o porte da obra", alertando: "Somando-se aos problemas apresentados em Belo Monte, há casos de projetos de responsabilidade tanto da iniciativa privada quanto públicos que tiveram aumentos consideráveis de custos como consequência de erros, omissões ou falta de detalhamento de estudos de viabilidade".
Concessão de licenças por decisão política não é novidade, e pode até passar imune na guerra de liminares em primeira instância, mas fatalmente irá complicar as obras na medida que o contencioso atingir o julgamento do mérito.
Não é razoável empurrar goela abaixo do país uma obra a respeito da qual existe, pelo menos, incerteza fundamental na esfera da viabilidade econômica. Preocupações com cronograma eleitoral não deveriam pautar a agenda de bancos estatais ou de fundos de pensão, que deveriam se pautar pela cautela.
Pior, para viabilizar os subsídios haverá mais sangria do Tesouro em prol do BNDES, que já comprometeu boa parte de sua carteira em outros investimentos além da prudência, como os de Jirau, Santo Antônio e alguns frigoríficos: coincidentemente, todos também caracterizados por expressivos passivos socioambientais.
ROBERTO SMERALDI, 50, jornalista, é diretor da Oscip Amigos da Terra - Amazônia Brasileira e autor do "Novo Manual de Negócios Sustentáveis" (Publifolha, 2009).
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