Ética na advocacia e tragédia grega
O Estado de S.Paulo - 13/04/10
A voz do jovem executivo passou rapidamente de amistosa a tensa: "Mas seu escritório não pode nos dar essa segurança? O advogado da outra parte já disse que dá, e precisamos soltar o dinheiro amanhã." "Impossível", respondi, explicando que o negócio que ambos queriam fazer - a venda de papéis de uma grande empresa no mercado intermediada pelo banco - esbarrava em obstáculo legal intransponível. A lei e as decisões dos tribunais diziam que não podia.
A solução que encontramos foi uma conversa com o advogado da empresa que emitia os papéis e que deveria, em primeiro lugar, ter chamado a atenção para a falha. Quem tem experiência na profissão sabe que nessas horas não se deve esperar reconhecimento de erros, ou pedido de desculpas. Mas previa embaraço ou, um pouco pior, irritação do colega. Nada disso aconteceu: uma voz bem disposta e de polidez a toda prova me informou que seu escritório, conhecido como dinâmico na execução de negócios, documentara daquela forma diversas transações anteriores e não poderia entrar em discussões técnicas.
Renunciei ao caso. A cena se passou há alguns anos, não muitos.
Na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, Édipo ouve de um profeta cego, Tirésias, a alusão à causa da insatisfação dos deuses e das consequentes tragédias que infelicitavam Tebas: Édipo havia assassinado seu pai, Laio, e casado com sua mãe, Jocasta, sem saber. Édipo não acredita e acusa Tirésias de mau e traiçoeiro. Seu impulso é culpar todos os que o cercam, menos a si próprio. Aos poucos percebe a verdade, quando fatos se acumulam a sua volta. Desesperado, cega os próprios olhos, entregando-se à metáfora de que, paradoxalmente, só a partir desse ato de desespero conseguiria enxergar.
O que têm que ver cenas tão diversas?
A primeira é, infelizmente, cada vez mais comum na advocacia. Nossa profissão mudou e lentamente o advogado deixou de ser visto como um profissional intelectualmente autônomo, em processo que aqui se acelerou depois da virada do milênio. Bom advogado é aquele que encontra meios de fazer um negócio acontecer, mesmo que se associando ao cliente no risco da ilicitude. Mau advogado, o que não o faz. O resultado aparece narrado na primeira história, que para antes do fim, mas pode originar investidores correndo riscos de que não foram avisados, prejuízos ao Fisco e à credibilidade das instituições econômicas, etc.
Mas de quem é a culpa? Da interposição de intermediários, como os bancos de investimento, entre o advogado e o destinatário final de seus serviços, com executivos voltados mais ao recebimento de bônus no curto prazo e menos para o interesse do próprio cliente ou do mercado que recebe os investimentos ofertados? Dos muitos escritórios de advocacia que aceitam remuneração vinculada ao sucesso da transação e o conflito de interesses que isso produz? Ou de forma mais etérea e diplomática dever-se-ia atribuir a culpa ao "mercado", que pretensamente exigiria documentos imutáveis que copiem a última transação bem-sucedida?
Assim pensaria Édipo, de Sófocles, se fosse bacharel e refletisse sobre a causa da infelicidade que o cerca, sem recurso ao autoconhecimento. E, fazendo isso, esqueceria de um princípio básico de Direito, o de que a cada privilégio corresponde um ônus.
Os advogados recebem por lei importantes privilégios que os cidadãos comuns não têm: postular perante o Poder Judiciário e aconselhar sobre o Direito aplicável a fatos concretos. Pesam ônus sobre nós para contrabalançar esses privilégios, ônus que constam de lei: segundo o Estatuto da Advocacia, em "seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social". Atua o advogado a partir da perspectiva do interesse de uma parte, que deve defender em relação aos interesses da outra, seja essa outra parte um particular, seja o Estado. Nunca, entretanto, em detrimento do interesse público em ver as leis cumpridas.
Na essência do problema da desvalorização da advocacia está a perda de noção pelos advogados da natureza pública do serviço que prestam. Mal que se inicia com a visão de que o advogado é um mero técnico e que a qualidade de seu serviço deve ser aquilatada por sua capacidade de "fazer as transações acontecerem", segundo o lugar-comum promocional usado por muitos escritórios. Bordão justo na maioria dos casos, mas que esquece a significativa minoria de negócios que simplesmente não devem acontecer, porque na forma ou no conteúdo violam a lei.
Se o prejuízo ao interesse público que resulta desse enfraquecimento ético não for suficiente, há também grandes prejuízos privados. O cliente que vê o advogado como um simples técnico o remunera como tal, muitas vezes promovendo cotações entre escritórios que julga farão trabalho semelhante, e contratando sempre e invariavelmente o mais barato. O jovem profissional bem formado, inteligente e idealista se afasta da prática da advocacia, procurando servir o interesse público diretamente, como juiz, integrante do Ministério Público, da Defensoria Pública e carreiras afins. O resultado de todos esses fatores se soma, criando para a advocacia ambiente mais pobre em termos morais, intelectuais e econômicos.
A solução reside numa palavra de três letras: "não." Precisamos reaprender essa palavra simples e usá-la com parcimônia, mas firmeza, sempre que o interesse público de que somos depositários exigir. Não a materiais de oferta de investimentos que omitem a verdade sobre a empresa em que se investe, a planejamentos fiscais que escondem, em vez de evitar o tributo que é devido, a interpretações da lei que ignoram sua letra e espírito, para levar em conta apenas o interesse financeiro imediato do cliente de ocasião.
Porque a alternativa é a tragédia grega.
ADVOGADO, É LIVRE-DOCENTE DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)
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