Agonia na zona do euro desestrutura projeto comum
O ESTADO DE SÃO PAULO - 01/03/2010
O espírito que levou os europeus a prosseguir com o euro não existe mais no momento em que precisamos resolver problemas que haviam sido amplamente previstos por Timothy Garton As. E Antígona está presente nesta tragédia também: a Antígona Loudiadis, do Goldman Sachs, autora de um complexo acordo de swap cambial que ajudou a Grécia a ocultar as dimensões de sua dívida, numa "ilusão de ótica", como a define delicadamente o Financial Times, enquanto o país ingressava furtivamente na zona do euro. Pena que a Grécia não tenha consultado algum sábio, como por exemplo Sócrates. Não me refiro a José Sócrates, o primeiro-ministro português, cujo país, aliás, os deuses - isto é, os mercados de bônus - também estão olhando receosos.
Brincadeiras à parte, devemos admitir que este não é apenas o primeiro grande teste da eurozona, mas também um momento de definição de todo o projeto da União Europeia. E como esta é a Europa, e não a Apollo 13, o fracasso é definitivamente uma opção. O mundo não vai esperar que desperdicemos mais uma década olhando para o nosso umbigo.
Não era necessário nenhum dom da profecia para prever os dilemas com os quais a eurozona agora se defronta. Em 1998, escrevi que a união monetária era "uma aposta de alto risco, sem precedentes", e argumentei que, na época, era a prioridade errada para a Europa. Em seguida, deixei-me embalar por uma falsa sensação de segurança com o aparente sucesso do euro, e os prazeres práticos e simbólicos decorrentes do fato de poder viajar pelo continente com apenas uma moeda no bolso. Agora, aparecem as dificuldades previstas. Como observa George Soros, uma moeda "completamente madura" não precisa apenas de um banco central, mas também de um Tesouro.
Para sobreviver e ser bem-sucedida, uma união monetária europeia precisa criar pelo menos um elemento mais forte de união econômica, que, por sua vez, exige um elemento mais forte de união política. A propósito, esta foi uma das principais motivações dos maiores arquitetos políticos do que na época se chamou "união econômica e monetária", entre eles François Mitterrand e Helmut Kohl. Não se tratou apenas, como se falou muitas vezes, do fato de a Europa pôr o carro (monetário) diante dos bois (políticos). Foi uma tentativa de usar o carro para conseguir os bois. Foi a última grande tentativa de lançar mão da chamada estratégia "funcionalista", pela qual seria possível construir uma Europa politicamente integrada mediante a integração econômica. Em termos gerais, isto funcionou durante meio século, da década de 50 à de 90; mas neste caso, não deu certo, ou enquanto esta crise não puder catalisar novos graus de integração, como as primeiras crises fizeram às vezes.
Com sua mentirosa dissipação suicida, a Grécia precipitou a crise. A Grécia é um país único, mesmo entre os PIGS (Portugal, Itália/Irlanda, Grécia e Espanha), pela combinação de um enorme déficit (estimado, no ano passado, em 12,7% do Produto Interno Bruto, PIB) e de um extraordinário endividamento (cerca de 125% do PIB, e crescendo). Não só adotou um padrão de vida acima dos seus meios, como usou os anos da eurozona para se tornar ainda menos competitiva, em gritante contraste com a Alemanha. Segundo um cálculo citado por Martin Wolf, do Financial Times, entre 2000 e 2009 os custos unitários da mão de obra grega subiram 23% em comparação aos da Alemanha.
Na quinta-feira, o país foi afetado pela segunda greve geral em duas semanas, e ainda não vimos nada. A Grécia prometeu aos aliados da zona do euro que este ano baixará o déficit de 12,7% para 8,7%. Pois sim, porcos podem voar! Ou então chamem o Goldman Sachs para outras ilusões óticas.
Mesmo que os gregos deixem que o governo faça a coisa certa, como cortes profundos e reformas estruturais, as coisas poderão piorar antes de melhorar.
Ao mesmo tempo, parece que, este ano, o governo grego precisa de um empréstimo de 55 bilhões de euros (US$ ) e a metade deste total nos três próximos meses. E se os deuses (os mercados de bônus) se zangarem, e não quiserem mais jogar? Mas o terceiro ato deste drama não foi escrito. Poderá acontecer qualquer coisa. Eu acho o seguinte: muito a contragosto, a Alemanha concordará com alguma forma de ajuda da zona do euro. Entretanto, só apoiará o mínimo necessário para acalmar os deuses, e somente impondo à Grécia as condições mais austeras, à maneira de Creonte.
Um observador diplomático de alto escalão em Atenas sugere que, segundo o programa de supervisão europeia da disciplina fiscal da Grécia, "haverá um alemão de baixo de cada escrivaninha". Sem mencionar a guerra. O vice-primeiro-ministro grego, Theodoros Pangalos, já trava a sua.
Lembrando a ocupação nazista, ele disse no início desta semana: "Eles levaram o ouro que estava no Banco da Grécia, levaram todo o dinheiro grego, e nunca o devolveram. Essa questão precisa ser encarada em algum momento futuro."
Os europeus da eurozona são bastante grandes e crescidinhos para superar isso, mas serão empreendidos enormes esforços, haverá muita raiva e tensões internas. A longo prazo, é possível que a crise contribua para fortalecer um pouco mais a eurozona, acrescentando um elemento da chamada "governança econômica" - embora isso tenha significados diferentes para alemães e gregos. A expansão econômica europeia cambaleia enquanto os asiáticos seguem pirateando. A meta sempre superambiciosa da Agenda de Lisboa de 2000, de tornar a Europa a economia mais competitiva baseada no conhecimento até 2010, parece ridícula agora, em 2010. E a debilidade econômica se mescla à debilidade política da Europa.
Por trás do monetário, vislumbra-se o fiscal; por trás do fiscal, o econômico; por trás do econômico, o político; e por trás do político, o histórico. A realidade mais profunda que está na raiz desta crise é o fato de que as experiências e as lembranças pessoais que impulsionaram a integração europeia durante 65 anos, desde 1945, estão perdendo a sua força. A memória pessoal da guerra, da ocupação, das humilhações, da barbárie europeia; o medo da Alemanha, inclusive o da Alemanha de si mesma; a ameaça soviética, a Guerra Fria, o "retorno à Europa" como garantia de uma liberdade conquistada a duras penas; a esperança na restauração da grandeza europeia: foram estas as grandes motivações biográficas que impulsionaram pessoas como Mitterrand e Kohl a adotar o euro. Poderão os europeus continuar construindo a Europa sem essas profundas motivações? E por acaso surgirão novas?
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA.
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