REVISTA VEJA
Roberto Pompeu de Toledo
No encalço de Chiu-Fang Kao
"Tudo o que um escritor quer é publicar. Escrever, assim
como falar, implica quase necessariamente ter alguém
na outra ponta. Quase - uma exceção foi Salinger"
O americano J.D. Salinger filiava-se à seleta família dos escritores que marcam fundo o leitor. Publicou quatro livros, só quatro - o célebre O Apanhador no Campo de Centeio e os melhores ainda Nove Histórias, Franny e Zooey e Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymour, uma Apresentação. Viraram todos objetos de culto. A mensagem suprema de Salinger, falecido no fim do mês passado, aos 91 anos, está contida no entanto menos nos livros do que no rumo que deu à sua vida. "Mensagem" é palavra rombuda. Quem se aplica em procurá-la nos livros, nos filmes ou nas biografias deveria lembrar-se de que especialistas mesmo em trazê-la são o carteiro e o e-mail. Mas desta vez passa. Alguma mensagem devem conter as opções radicais que Salinger tomou na vida, e das boas - ambígua, escorregadia.
Ele publicou seus livros entre 1951, aos 32 anos, e 1963, aos 44. Depois, descontado um conto publicado na revista New Yorker em 1965, calou-se. Mas não ficou nisso. Também disse adeus a este mundo, embora continuasse vivo. Até então um típico nova-iorquino, trancou-se em sua propriedade de Cornish, New Hampshire, e tornou-se o mais cioso dos seres humanos de seu isolamento. Que quis ele dizer com tais atitudes? Sobre a primeira delas - a decisão de não mais publicar -, deu uma espantosa explicação, em 1974, na única manifestação pública que se permitiu nestes anos todos: "Há uma enorme paz em não publicar. Publicar é uma terrível invasão de privacidade. Gosto de escrever. Mas escrevo para mim mesmo e para meu prazer".
O primeiro motivo de espanto é a afirmação de que não deixou de escrever. Seu caso não é o de Rimbaud. O do poeta francês é mais compreensível - ele cansou de escrever e foi viver outra vida. Já Salinger, escritor famoso e adorado, no auge do domínio de sua arte, continuou produzindo, segundo afirmou, mas ao amparo da resolução de não entregar o produto. Tudo o que um escritor quer é publicar. O ato de escrever, assim como o de falar, implica quase necessariamente ter alguém na outra ponta. Quase - uma exceção foi Salinger. Também digna de nota é a afirmação segundo a qual "publicar é uma terrível invasão de privacidade". Ora, o escritor é que invade a privacidade do leitor. É ele o agente, nessa relação; o leitor é o paciente, ainda que consentido. O escritor é que avança com suas fantasias, truques e verdadezinhas em direção ao leitor. Salinger inverte a equação. O leitor é que invadiria a privacidade do autor. Mas quem deixa isso acontecer? O próprio escritor, claro. Trata-se, portanto, de um invasor de si mesmo.
Isso nos conduz à segunda decisão de Salinger - a de isolar-se. Ele sentia-se invasor de si mesmo não só como escritor. Também se sentia gastar-se, ou malversar-se, ou dispersar-se, com a simples presença em sociedade. Um lado da decisão pode explicar-se pela recusa em deixar-se perverter por este mundo idiota entre os mais idiotas que é o das "celebridades". Mas pode-se apostar que havia outro lado, mais profundo, a puxá-lo para o isolamento - e este lado tem a ver com o mesmo tormento que sacode seus principais personagens, atazanados pelo desconforto de viver, intrigados com o mistério do mundo, à procura de algo… O quê? O quê? …Deus, ao fim e ao cabo .- presença que percorre o centro da obra deste autor zen-budista/hinduísta/cristão.
No livro Carpinteiros..., Salinger conta a história da procura do duque Mu, da China, por alguém capaz de comprar-lhe um cavalo excepcional - não um bom, mas um excepcional, "aquele que não levanta pó nem deixa rastro". Foi-lhe indicado o mercador Chiu-Fang Kao. Chiu-Fang Kao buscou, buscou, e afinal anunciou que havia encontrado um animal excepcional. "Como ele é?", perguntou o duque Mu. "É uma égua meio baia", respondeu Chiu-Fang Kao. Quando o animal finalmente chegou, o duque sentiu-se traído. Era um macho, e negro. Como pode conhecer cavalos quem não sabe distinguir-lhes nem a cor nem o sexo? Mas - surpresa! - o animal provou ser realmente excepcional. A pessoa que lhe tinha recomendado o mercador explicou: "O que Chiu-Fang Kao tem em mente é o desempenho espiritual. Pensando no essencial, ele se esquece dos detalhes corriqueiros; atento às qualidades interiores, perde de vista o exterior". Suponhamos, e talvez não estejamos longe da verdade, que Salinger se isolou do mundo para, sem interferência do exterior, melhor procurar as qualidades interiores dos seres e das coisas. Livre das contingências deste mundo, ele estaria, como Chiu-Fang Kao, mais bem situado para buscar o essencial.
Achou?
Nenhum comentário:
Postar um comentário