Barrados no baile argentino
FOLHA DE SÃO PAULO - 26/01/10
Sábado de tarde, 29 de dezembro de 2001. Alguém do Departamento de Estado dos EUA liga para o Ministério das Relações Exteriores da Argentina, atrás do ministro. O ministro renunciara, como seus colegas. Ligam para o Cerimonial da Presidência. O presidente renunciou? Ainda não. Mas demoram um pouco para achar Adolfo Rodríguez Saá, presidente provisório, eleito pelo Congresso depois da queda de De La Rúa (a história foi contada pelo jornal então oposicionista, "Página/12"). Na madrugada do sábado, uma multidão invadira o Congresso e pichara a Casa Rosada, sede do governo. No domingo de noite, Rodríguez Saá, que oficializara o calote, renunciava depois de sete dias no poder.
Agora, o tumulto é infinitamente menor. Não se sabe apenas quem é o presidente do banco central, que na Argentina, em tese, tem mais poderes que o BC brasileiro. Martin Redrado era o presidente do BC até quinta-feira passada, de acordo com o governo de Cristina Kirchner. Redrado (e parte da oposição aos Kirchner) acha que ainda detém cargo. Cristina confirmou Miguel Angel Pesce, vice de Redrado, como presidente de fato na sexta-feira.
Redrado havia sido demitido no dia 7 passado por se recusar a obedecer a um decreto de Cristina solicitando parte das reservas internacionais do BC para pagar a dívida externa do governo. No dia 8, a Justiça decidiu provisoriamente deixar Redrado no cargo e suspender a transferência de fundos. Pela lei do BC, Redrado só pode ser demitido depois de ouvida uma comissão do Congresso, cuja opinião, no entanto, pode ser ignorada pela presidente. Na sexta-feira, outra decisão judicial determinou que o governo não pode nomear um presidente "definitivo" para o BC até que o Congresso e o Executivo cumpram o rito legal para a destituição de Redrado. O governo achou que a decisão suspende Redrado, que por sua vez tentou entrar no BC no domingo de noite e foi barrado pela polícia.
O conflito político na Argentina extrapola largamente as vias institucionais. Ou melhor, não há consenso mínimo entre as partes a respeito do que são as vias institucionais. A política rotineira é pontuada de acusações de golpismo, de parte a parte. A ação do governo, e a reação da oposição, é frequentemente decidida na Justiça ou em votações no Congresso acompanhadas por conflitos de rua ou ameaças de "piqueteiros" (dos Kirchner) e de "tratoraços" (de agricultores e oposição). Parece um tumulto da espécie chavismo/ antichavismo, mas em baixa temperatura, que não evolui para coisa semelhante porque a Argentina não é, de longe, tão social e politicamente rudimentar como a Venezuela. Mas, incompreensivelmente, a Argentina tem um histórico já de quase seis décadas de tentativas de autodestruição.
Em tese, não há motivo para crise financeira neste ano, embora as contas do governo estejam no limite. Mas neste ano a economia ainda não vai recuperar o terreno perdido em 2009. Logo, os Kirchner precisam de algum trunfo (mais gasto) para se apresentarem bem na eleição de 2011 e estão dispostos a muita coisa para obtê-lo; a oposição não vai deixar barato.
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