Justiça de transição
FOLHA DE SÃO PAULO - 13/01/10
Na Argentina, as Forças Armadas saíram do poder desmoralizadas. No Brasil, todavia, elas não saíram derrotadas do governo
COMO RESOLVER a concepção de justiça em períodos de transição política? Essa questão ainda não foi resolvida pelas ciências sociais. A prova é a crise causada pelo anúncio do governo Lula de criar uma comissão da verdade para lidar com os acontecimentos ocorridos durante o regime militar (1964-1985). Segundo a mídia, comandantes militares ameaçaram entregar os seus cargos. E o presidente Lula recuou ao prometer revisão do texto.
Duas concepções teóricas sobre a justiça de transição competem entre si. Os idealistas procuram tratar o evento com base em conceitos universais. Os realistas analisam a balança de forças política entre os relevantes atores da transição. A partir disso, definem qual é a melhor resposta legal. A justiça seria um epifenômeno da política.
A visão idealista influenciou a criação, depois da Segunda Guerra Mundial, do Tribunal de Nuremberg, que puniu os violadores de direitos humanos. Idem para a Argentina, a partir do presidente Raúl Alfonsín até, recentemente, quando a Lei da Anistia foi abolida pelo Congresso por se chocar com tratados internacionais.
Os realistas argumentam que a punição aos nazistas foi possível porque houve uma clara vitória de um lado sobre o outro. Justiça dos vitoriosos.
Também na Argentina, as Forças Armadas saíram desmoralizadas do poder, seja pelas contumazes violações aos direitos humanos, seja pelo pífio desempenho econômico, seja pela derrota na Guerra das Malvinas.
No Brasil, todavia, as Forças Armadas não saíram derrotadas do governo, tanto é que conseguiram, em 1979, negociar com o Congresso uma autoanistia. Pacto este que contribuiu para uma razoável transição pacífica rumo a uma democracia eleitoral. Além do mais, asseveram os realistas, as Forças Armadas são hoje consideradas pela população brasileira como a instituição laica de maior credibilidade.
Pela Constituição de 1988, a tortura é crime prescritível, mas o Brasil é signatário de convenções internacionais que consideram esse crime imprescritível. Ministros do atual governo almejam uma mudança constitucional para alterar o teor da vigente Lei da Anistia. Um direito deles. Cabe ao Congresso decidir se acata ou não tal proposta. Outros ministros se opõem, por temerem possível reação armada dos militares.
Esse temor "per se" é uma prova de que não há um firme controle civil democrático sobre os militares. Afinal, o presidente da República é o comandante em chefe das Forças Armadas.
O momento da apresentação da proposta da criação da comissão da verdade foi o pior possível, por ser ano eleitoral. Lula abriu a discussão sobre tema tão complexo exatamente em seu último ano de governo. Resultado: setores da oposição detectaram que o projeto prejudica a candidatura da ministra Dilma Rousseff, que militou em organização armada clandestina durante o regime militar.
Foram precisos 25 anos para o surgimento de uma proposta concreta para a criação de um comissão da verdade. Não conheço outro país que tenha demorado tanto a dar esse passo fundamental para a contagem da história verdadeira do país. Todavia, ao contrário de Chile, Peru e África do Sul, não foi proposta uma comissão da verdade e reconciliação. Apenas de verdade. Por quê?
Isso levanta suspeitas do lado militar de que, no fundo, o governo brasileiro estaria mais interessado numa revanche do que em fazer justiça.
Essa desconfiança acentua-se quando o documento governamental menciona como um de seus objetivos estratégicos "promover a apuração e o esclarecimento das violações praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil". Poderia ser usada a expressão "conflito político", para deixar claro que a apuração seria para ambos os lados, ajudando na reconciliação nacional.
Uma contribuição da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul foi não ter feito distinção moral entre violações aos direitos humanos.
Foi estabelecida uma equivalência legal entre os perpetradores, de ambos os lados, dessas violações. O arcebispo Desmond Tutu, presidente dessa comissão, deixou claro que ninguém detinha carta branca para usar o método de ação que mais lhe conviesse.
No Brasil, os militares acreditam que lutaram uma "guerra justa" ("jus ad bellum") contra o surgimento de uma ditadura comunista. A oposição também acreditava na justeza de sua pugna. Há várias verdades em jogo que precisam ser discutidas democraticamente. Corre-se o risco de perdermos uma chance de ouro no avanço desse frutífero debate.
JORGE ZAVERUCHA, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade da Universidade Federal de Pernambuco. É autor de "FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia", entre outras obras.
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