Papai Noel derrete no Pólo Norte
O GLOBO - 22/12/09
Não temos mais chaminés nem ceias transcendentais. Em vez do saco de presentes, temos as calamidades coloridas dos shopping centers. Em vez da família reunida em torno do peru, vemos pobres e ricos solitários tentando recriar uma noite feliz nem que seja nos botequins e lanchonetes.
Hoje, no presépio de Belém, perto da manjedoura onde o menino Jesus recebeu os três reis mago, nos lugares sagrados de Jerusalém, explodem os homens-bomba berrando “Feliz Natal, cães infiéis”! É uma festa nostálgica para o Ocidente, rachado ao meio pelos atentados.
Que estranho destino é esse da humanidade se fechando como uma cobra mordendo o próprio rabo, a morte no mesmo lugar no nascimento.
Todo mundo reclama do Natal, repararam? “Ah, porque no Natal aumenta o sentimento de culpa, a gente tem de aguentar a família e os traumas infantis; no Natal eu fico triste porque me separei do marido; o Natal é uma festa influenciada pelos americanos; chega de Natal”.
Mas, de noite, olham com ternura as bolinhas douradas da árvore, comem seus pedaços de peru, dizem que “adoraram o presentinho, coisa pouca, não leva a mal...”.
Lembro-me que no Natal, durante as ceias, eu via do meu canto de menino as ligações frágeis entre parentes, entre tios e primos, as antipatias disfarçadas pelos abraços frios e os votos de felicidades.
O destino das famílias ficava evidente no Natal. Os pobres se conformando com o tosco prazer dos presentes baratos e os ricos querendo provar que serão felizes a qualquer preço.
Egoístas o ano inteiro, esfalfavam-se para viver uma alegria compulsiva entre gargalhadas solidárias, beijos molhados de vinho e uísque, terminando nas tristes saídas na madrugada, com crianças chorando e presentes carregados com tédio...
Papai Noel sempre me intrigou. Quem era aquele sujeito que começava a aparecer no fim do ano, nas lojas, no rádio, na tv?
Mas, nessa época, lembro que alguns getulistas do rádio lançaram uma campanha nacionalista para substituir o Papai Noel por um outro símbolo: o “Vovô Índio” – um velho silvícola seminu, com peninha na cabeça, que traria presentes para os “curumins”.
Foi um tremendo fracasso, claro, numa época em que o cinema americano já mandava o Bing Crosby cantando “White Christmas” sem parar. Papai Noel é a metáfora de um pai bom, sem mãe por perto.
Papai Noel sempre foi uma imagem de perdão e carinho. Mas não para mim. Nada mais parecido com um Natal do que outro.
Papai Noel me dava os presentes, sim, mas sempre acompanhados de uma carta (escrita a mão, em tinta roxa) em que me fazia repreensões dolorosas: “Por que você desobedeceu sua mãe e matou a aula de piano? Por que você bateu na sua irmã? Se você fizer de novo, ano que vem tem castigo”.
Para mim, Papai Noel era assustador por causa desse estratagema educativo de meu pai. Daí, a conclusão infantil: Papai Noel gostava de todo mundo, menos de mim. Papai Noel foi meu superego de barbas brancas.
Talvez por isso comecei a criticar o mundo desde pequeno. Deu no que deu... Hoje sou esta cabeça falante me esgoelando no rádio e TV. Eu fui o primeiro de minha turminha de subúrbio a desconfiar que Papai Noel era uma fraude; comecei com ele e hoje tenho o Arruda e outros, neste país farto de mentirosos.
Mas, meus amigos lutavam contra essa desilusão, mais ou menos como velhos comunas não desistem até hoje do paraíso comunista.
Daí para a frente, não parei mais. Entrei de sola na lenda da cegonha e do bebê que “papai do céu mandou”. Daí para descrer de Deus foi um pulo, para o horror escandalizado dos colegas do colégio jesuíta. “Deus é bom, padre?” “Infinitamente bom”.
“Ele sabe de tudo?” “Sim”, respondiam os padres já desconfiados. “Então, por que ele cria um cara que depois vai para o inferno?” Até hoje ninguém me respondeu isso.
E assim fui, até começar meu ódio ao “imperialismo norte-americano” dos anos 60. Hoje, Papai Noel vem com as renas canibais de um Pólo Norte que está derretendo pelo efeito estufa que os líderes mundiais se recusam a combater. Hoje, o Natal é uma saudade do Natal.
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