terça-feira, dezembro 22, 2009

ANTONIO FERNANDO BORGES

Tiro no pé


O Globo - 22/12/2009

Pragmáticos por dever de ofício, nossos empresários são pouco dados a devaneios ou metáforas, e da obra de um poeta como Castro Alves talvez se recordem apenas dos trechos que leram na escola. Então talvez se espantem se alguém lhes disser que andam a imitar o Poeta dos Escravos, num aspecto bem prosaico de sua atribulada biografia.


Morto aos 24 anos, Castro Alves tinha apenas 21 quando tropeçou durante uma caçada e atingiu com um tiro de espingarda seu calcanhar esquerdo — o que levou à amputação do pé e a uma fragilidade permanente que, agravada pela tuberculose, encerrou sua vida em 1871. Pouco dados a metáforas, nossos empresários também estão (metaforicamente) atirando no próprio pé.

Falar em cegueira talvez seja exagero, mas uma coisa é certa: sejam donos de redes de supermercados, herdeiros de impérios na área da construção civil ou lideranças do ascendente setor da telefonia, nossos empresários mostram uma surpreendente miopia quando elogiam e aplaudem um governo — na verdade, um projeto político — que vai lhes roubando, aos poucos, a própria liberdade de agir. Que o digam a legislação cada vez mais restritiva e a carga tributária.

Mais do que exemplos pontuais, no entanto, seria melhor falar de um “espírito de época”: se um empresário declara, em entrevista, que o país “está no rumo certo”, outro afirma, em artigo, que o presidente merece um terceiro mandato, para poder completar seu trabalho. E vários deles, juntos, ajudam a financiar o hagiográfico filme sobre “o filho do Brasil” — poderosa peça de campanha eleitoral para 2010.

É triste ver nossos empresários apostando em projetos “culturais” que pregam a longo prazo, mas abertamente, a substituição do capitalismo por “um outro mundo possível”.

Pragmáticos por dever de ofício, cientes de que faz parte do jogo ceder alguns anéis para preservar as mãos, nossos empresários só precisam se lembrar de que o capitalismo deve sua existência e desenvolvimento a um conjunto de valores e crenças, também conhecido pelo nome genérico de Civilização. E, na medida em que este legado se encontra na mira do próprio governo, sua sobrevivência como empresários também pode estar comprometida.

A longo prazo, leitor, estaremos todos mortos, é claro. Mas “um tiro no pé”, neste caso, é mais do que uma agonia lenta: é sinal de irresponsabilidade com o futuro. E isso inclui os filhos e netos que os próprios empresários geraram — ao contrário do desditado poeta baiano, que não transmitiu a ninguém o legado de nossa miséria.

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