Embalado por uma sequência de notícias positivas, o Brasil respira um clima de otimismo. A retórica do presidente e a propaganda do governo tratam de lhes dar a mais ampla repercussão e extrair-lhes o máximo simbolismo possível. A mensagem subliminar ecoa o velho "ninguém segura este país", bordão repetido ad nauseam nos tempos do "milagre brasileiro" e da ditadura militar. Há boas e sólidas razões para ser otimista no Brasil de hoje. Não menos sólidas, porém, são as razões para evitar o triunfalismo, tanto mais quando surge acompanhado da revalorização anacrônica do Estado empreendedor.
Copa do Mundo em 2014 e Olimpíada em 2016, quem pode torcer o nariz? Daí a dizer, como disse o presidente, que não há que se preocupar com os gastos, pois todo o centavo utilizado será investimento, vai uma enorme distância. A fala presidencial mostra o primeiro perigo do triunfalismo: o de gastar além da conta e, pior, gastar mal.
O horizonte de médio prazo para as contas públicas tem nuvens, formadas por um acúmulo de decisões recentes do governo federal que implicam aumento permanente nos gastos correntes, em especial com pessoal. A redução da meta de superávit primário neste ano até se justifica, mas acomoda uma tendência à expansão dos gastos que dificilmente será revertida em 2010, deixando todo o eventual esforço fiscal adicional, em ano eleitoral, do lado da receita, que vem demorando a reagir à melhora da economia. Ao que tudo indica, do Congresso, com o beneplácito do Executivo, virão em breve novas pressões estruturais sobre o gasto, especialmente na área da Previdência.
É à luz desse quadro, ao qual se somam vários investimentos e projetos de investimento que disputam espaços cada vez mais exíguos no orçamento público, que se devem analisar os desafios representados pela realização dos dois maiores eventos esportivos globais no intervalo de apenas dois anos. Alguém supõe que a iniciativa privada será capaz de realizar os investimentos necessários? Existe quem creia que não serão imensas as pressões para que o investimento público não apenas tome a dianteira, mas também cubra toda e qualquer lacuna deixada pelo investimento privado? Pode haver quem pense que devamos nos despreocupar com o risco de que os cofres públicos tenham de derramar montante muito maior do que o inicialmente estimado, por força da urgência dos prazos, do "compromisso" com a imagem internacional do País e do jogo dos muitos e poderosos interesses mobilizados? Devemos acreditar piamente que, por exemplo, todos os investimentos para modernizar e, em alguns casos, ampliar os já superdimensionados estádios brasileiros respondam aos melhores interesses do País?
Outro perigo do triunfalismo é acreditar ser possível promover com igual empenho todos os projetos em tese "estratégicos" para o desenvolvimento: fabricaremos submarino a propulsão nuclear, enriqueceremos urânio para uso próprio e exportação, reequiparemos as Forças Armadas, reergueremos a indústria naval, iremos de São Paulo ao Rio num trem-bala, daremos saltos em vários campos da ciência e da tecnologia, construiremos 1 milhão de moradias, universalizaremos o acesso à banda larga, colocaremos todos os jovens no ensino médio, a cada cerimônia oficial se acrescenta mais um item à lista de objetivos governamentais. Grande parte deles tem mérito. Falta, porém, discussão mais profunda, com a sociedade e no Congresso, sobre as prioridades. Maior ainda é a falta de gestão para transformar objetivos em resultados, donde a distância colossal entre a retórica e os fatos. A esse respeito, nada mais exemplar que o episódio recente do Enem, em que o propósito de ampliar rapidamente seu alcance não encontrou correspondência em cuidados mínimos com a segurança na impressão e estocagem das provas, o que permitiu a uma dupla de mequetrefes roubá-las, escondendo-as debaixo das roupas (as de cima e as de baixo).
Dado que os recursos são finitos, por maiores que sejam as asas da nossa expectativa em relação às ainda longínquas receitas futuras do pré-sal, é preciso discutir a sério o que mais nos interessa (ter submarino a propulsão nuclear ou melhores professores, por exemplo?). Nem sempre as respostas são óbvias e fáceis, mas é preciso enfrentar as perguntas. O triunfalismo nos cega para a importância das próprias perguntas.
O terceiro perigo do triunfalismo é despertar reações negativas de quem tem razões, subjetivas que sejam, para temer o nosso "triunfo". Perde-se com isso capital de confiança e capacidade de influência, de um lado, sem o correspondente acréscimo de poder real, de outro. Isso porque o triunfalismo se caracteriza justamente por nos fazer parecer mais do que na verdade somos e podemos. É nas relações do Brasil com os nossos vizinhos que esse perigo aparece de forma mais clara. Não por acaso, veio de um ex-presidente do Uruguai, Julio María Sanguinetti, em artigo publicado no jornal argentino La Nación, em 2 de outubro, a primeira advertência explícita sobre os riscos do triunfalismo brasileiro. Não nos iludamos: por maior que se tenha tornado a assimetria econômica entre o Brasil e os demais países da América do Sul, as nossas possibilidades de projeção global dependem da nossa capacidade de exercer um papel de moderação política e promoção do desenvolvimento em nossa vizinhança.
Os perigos do triunfalismo não se limitam, porém, ao nosso entorno imediato. Eles podem contaminar tolamente as nossas relações com os países centrais, em especial os Estados Unidos, na sensível área da energia nuclear, na qual, de quando em vez, temos os nossos arroubos de arrependimento por havermos assinado (tardiamente) o Tratado de Não-Proliferação Nuclear.
É hora de pôr a bola no chão. Não para cair na retranca, mas para podermos jogar o nosso melhor jogo. E vencer os muitos desafios que temos pela frente. |
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