Servindo à pátria
O GLOBO - 06/09/09
– É o 7 de setembro, que vai cair na segunda-feira – informou ele.
– Ah, é verdade, tinha me esquecido.
– Eu também esqueço, mas esse é fácil de lembrar, é o descobrimento do Brasil.
– É o quê?
– Descobrimento do Brasil, Pedro Álvares Cabral.
– Vivendo e aprendendo – disse eu.
– Pois é – disse ele.
E “pois é” repito eu agora, caminhando pela rua abaixo, envolto em pensamentos melancólicos. A semana do 7 de setembro ainda será conhecida como a Semana da Pátria? Não creio, está muito fora de moda falar em pátria. E fica difícil mesmo explicar o que é, ou era, pátria, agora que as lealdades são divididas e a pátria pode ser algo complicado de identificar. Não adianta tentar explicar o que é pátria, tarefa ingrata e de resultados duvidosos. Mas, ao mesmo tempo, é impossível, para o coroa nascido e criado no século XX, deixar de lembrar o tempo, não tão remoto assim, em que todo mundo sabia, ou achava que sabia, o que era pátria.
Na escola, a gente aprendia o Hino Nacional, que vinha impresso em praticamente todos os cadernos. Era como missa em latim. Ninguém entendia nada, mas respeitava do mesmo jeito, eram terrenos sagrados, que mereciam uma linguagem especial. Nas aulas de canto orfeônico, obrigatórias durante os quatro anos de ginásio, diversos hinos patrióticos, juntamente com peças de Villa-Lobos, faziam parte do repertório. E, finalmente, a Semana da Pátria atingia seu ponto culminante com a parada escolar a que todos eram obrigados a comparecer, sob pena de não sei quantas faltas em Educação Física e consequente possível reprovação, porque as faltas em Educação Física, não lembro a razão, tinham um peso maior que o das outras disciplinas.
Para tomar parte na parada, era necessário, naturalmente, que se aprendesse a marchar, pois não ficava bem marchar fora do compasso e pegava mal para o colégio, até porque, na falta de ter o que fazer, os locutores e comentaristas de rádio dedicavam extensas palestras à análise dos desfilantes. Receio que não tenho muito boas recordações desse período, porque, apesar de não faltar aos ensaios e desfiles, nunca consegui assimilar bem os rudimentos da marcha. Melhor dizendo, nunca consegui assimilar nada, acho que é complexo demais para meus neurônios. Até hoje não sei se se começa a marcha com o pé esquerdo ou o direito e se é o esquerdo ou o direito que se pisa em sincronia com o bumbo. Dediquei várias esforçadas noites a decorar, mas na hora sempre esquecia – devo ter feito a festa de vários locutores.
Felizmente, o jovem não servia à pátria apenas nos desfiles escolares. Para quem estava em dia com os estudos e chegava aos 18 anos, havia a oportunidade de entrar para o CPOR, o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. Eu entrei, é claro, mas não cheguei a completar o curso e fui afavelmente desligado pelo comando, não me lembro mais com que caridosa explicação. Recordo apenas que eu tinha sido escolhido para compor um grupo de estudantes convidado a uma viagem aos Estados Unidos e que um major, com ar aliviado, me chamou para comunicar que o Exército não iria criar dificuldades. Pelo contrário, esperava ele que eu representasse dignamente o CPOR da Bahia no exterior.
– O senhor quer que eu venha aqui depois, para fazer um relatório?
– Hein? Não! Não, não precisa, meu filho. Você viaja, volta e se apresenta de novo no ano que vem.
– Me apresento aqui?
– Não! Não, aqui não. Se apresente para o exame médico.
Exame médico esse ao qual compareci devidamente e no qual, ao contrário do que ocorreu com o primeiro, fui reprovado. Até hoje não entendi o motivo para essa discriminação, que me impediu de me exibir às contemporâneas em meu vistoso uniforme de aspirante, usando óculos ray-ban e imitando o jeitão com que o General MacArthur aparecia no cinema. Assalta-me sempre a suspeita de que o então capitão Sampaio, um dos meus instrutores, esteve por trás do complô contra a minha volta aos quadros das Forças Armadas. Nós até que nos dávamos bem, mas é possível que ele ficasse um pouco impaciente com o fato de que, apesar de vigorosamente repreendido, eu esquecia e só chamava o fuzil de “espingarda”, o que, para o capitão, era pior do que dizer que Napoleão, seu ídolo, não entendia nada de guerra. Além disso, como se sabe, o bom soldado tem que ter familiaridade com seu armamento, mas eu nunca acertei a desmontar e remontar meu valente mosquetão. Só ia até o percussor. Quanto ao resto, se me forçassem, eu acabava espalhando peças suficientes para fabricar mais dois fuzis.
Lembro que, no segundo exame médico, fui incluído num tal grupo D e que um colega me explicou que era D de Deficiente. Não é, como descobri depois de anos escondendo a humilhante pecha, é de Definitivamente Incapaz, mas não sei qual o pior, para um ego em perene mau estado de conservação. Bem, fiz o que pude para servir à pátria, não dei muita sorte. E até hoje estou pronto para servir da forma que puder, basta me dizerem o que devo fazer. Aliás, pensando melhor, não me digam nada.
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