José Sarney está certo. Ninguém é eleito presidente do Senado “para ficar submetido a cuidar da despensa ou limpar as lixeiras da cozinha da Casa”. O problema é que quem cuidou da despensa nos últimos 14 anos foi seu afilhado, Agaciel Maia, nomeado diretor-geral do Senado em 1995. A faxina na cozinha da casa-grande revela ao país o que já se sabia: como a figura do patriarca, que distribui benesses a amigos, serviçais e parentes, se impõe na grande política brasileira.
Casa-grande & senzala, do escritor Gilberto Freyre, foi publicado em 1933, quando José Ribamar Ferreira de Araújo Costa tinha apenas 3 anos. Nascido em Pinheiro, no Maranhão, só em 1965 adotou legalmente o nome de Sarney – primeiro nome de seu pai. Tinha 35 anos e já era deputado federal, conhecido como “Zé do Sarney”, ou José, filho de Sarney.
No clássico de Gilberto Freyre, o patriarcalismo é um dos motes centrais. O patriarca era considerado o dono de tudo o que estivesse em sua terra. Escravos, parentes, filhos, mulher. A casa-grande de Freyre era o cenário arquitetônico que explicaria a organização social e política do Brasil. E o patriarca, o senhor a quem todos deviam favores e cuja mão beijavam.
José Sarney está certo. Existe uma campanha midiática contra ele. Não há dia em que o senador não seja citado na cobertura dos lixos que transbordam no Senado. Mestre em articulação, Sarney sabe que só está na ribalta porque quis presidir a casa-grande pela terceira vez. Jogou nos bastidores para derrotar o candidato do PT. Não queria nem concorrência – achava que tinha de ser eleito por unanimidade. Abriu mão da confortável posição de eminência parda de Lula para, como senador pelo Amapá, se aposentar com chave de ouro. Não se sabe que acrobacias lhe restam para escapar à renúncia, pressionado pelos mesmos senadores que o elegeram. O jogo político é ingrato, e o ex-presidente do Brasil, que um dia apoiou a ditadura militar e noutro dia foi o guardião da transição democrática, está consciente. Assistiu a muitas quedas de amigos.
Sarney não previa que seria crucificado só por fazer tudo o que todo mundo sabe que sempre fez. O Maranhão, que começou a governar em 1966, está em 26º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano. É o segundo pior Estado na tabela do IDH, só perde para Alagoas. Mesmo assim, Sarney acumulou fortuna, poder e influência.
O presidente Lula se queimou ao tentar blindar Sarney como um “incomum”, acima do bem e do mal. Mudou o tom na semana passada. A sujeira da cozinha invade os salões de estar e obriga políticos com discursos prontos a tropeçar nas vírgulas. Lula passou a dizer que Sarney lhe prometera investigar as denúncias. “Só espero que haja apuração”, disse Lula.
Sarney não pode chefiar investigações. Porque muitas denúncias são contra ele e seu afilhado alagoano, Renan Calheiros, ressuscitado com honras e o olhar de sonso. Em duas gestões, Sarney e Renan criaram 174 novos cargos no Senado. O maior promotor de atos secretos da casa-grande, Agaciel Maia, foi afastado (por 90 dias), mas contou com Sarney como padrinho de casamento de sua filha há duas semanas.
Sarney tem 120 funcionários a sua disposição no Senado. A viúva de um ex-motorista seu, nomeada por ato secreto, mora há quatro anos em imóvel restrito a senador – para servir café em meio expediente, recebe R$ 2.313 por mês. Um neto opera, com autorização de seis bancos, esquema de empréstimos consignados para servidores do Senado. Outro neto foi nomeado para um gabinete e exonerado por ato secreto. Um empregado doméstico da filha Roseana em Brasília é contratado pelo Senado como chofer e ganha R$ 12 mil. O apelido dele é “Secreta”. Há 23 anos, ato secreto efetivou Roseana como funcionária do Senado.
Não adianta só culpar Sarney. O senador Pedro Simon (PMDB-RS) disse que a renúncia de Sarney seria “um ato de grandeza”. Saciada, a opinião pública faria as pazes com o Senado? Entre os 663 atos secretos, uma cozinha de apartamento funcional foi reformada por R$ 100 mil. A senzala ainda tem muito a revelar sobre a casa-grande.
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