Esconde-se atrás da ideia do terceiro mandato a figura do ditador benevolente. Trata-se de uma praga que a história eliminou e que tenta ressuscitar valendo-se da pouca fé democrática de alguns imbecis contemporâneos
Acho que ainda não deu sete da noite. Estou na Redação lendo mensagens que me chegam pelo computador. Divirto-me em especial com a de uma assessoria de imprensa paulista. Avisa ela que dois de seus clientes “já confirmou” presença num fórum não sei das quantas. Pelo visto, só um deles vai. É quando toca o telefone. Reconheço a voz grave e preocupada do secretário da Redação. — O Palhares está lá em baixo de novo. Disse que não sobe. Está te esperando.
O Palhares, já disse antes, é o canalha fundamental. Ainda hoje anda por aí de casaca, cabelo rigorosamente passado na brilhantina, fino bigode talhado à navalha. Conversa sobre política, história e filosofia. Mas quem o conhece sabe que a rasa intelectualidade não passa de subterfúgio para impressionar as mulheres. Certa vez, no corredor da casa, agarrou a cunhada e beijou-lhe a boca. Daí o epíteto, “Aquele que não respeita nem as cunhadas”.
Pois bem, desci a encontrá-lo. — Que queres, Palhares, que grande motivo o traz? Fumava. Ele sempre fuma nessas ocasiões. — Tens que escrever sobre o terceiro mandato, sussurrou. Achei estranho. Haveria alguém a segui-lo? E mais, se houvesse, qual o problema em debater tal tema livremente, em alto e bom som? — Por que estás falando assim, sorrateiro?, perguntei. — Não percebes? Não percebes?, seguiu, ainda em tom de espião. — Há uma onda, não sei se marola ou tsunami — e, por favor, não me venha com trocadilhos! —, sobre isso. É capaz de algum desses deputados aí querer mudar a Constituição. Se o povo começar a apoiar, daqui a pouco temos um tiranete a dar ordens até sobre a hora de sair na rua.
— Vai-te, Palhares, preciso voltar à Redação. Não te preocupas. O próprio Lula repete todo dia que não quer saber de terceiro mandato. Acreditemos nele. O canalha estendeu a mão em despedida. Riu, só com o canto da boca e enquanto soltava a fumaça de uma funda tragada. Fitou-me. — Tchau, jornalista. Eu acredito nele. Deu as costas e sumiu na escuridão.
Reminiscências O terceiro mandato assombra o país como um personagem antigo de literatura. Os defensores da idéia usam a alta popularidade do atual presidente para lustrar a falsa tese de que a continuidade dele no poder por mais quatro anos tem legítima fundamentação democrática. Seria, portanto, válida.
Esconde-se atrás do terceiro mandato, porém, a figura antiga do ditador benevolente. É algo exaustivamente estudado na Ciência Política. O grande debate a respeito é quase frugal: para quê despender recursos em eleições, se o governante já distribui bem-estar à sociedade em nível majoritário? Se ele exerce o poder em benefício do povo e do povo obtém amplo apoio e aceitação?
Muitas são as respostas do lado contrário desse debate. Mas uma em especial merece menção: a dos chamados institucionalistas. Segundo eles, os costumes forjam instituições. Essas instituições podem levar ao desenvolvimento ou ao atraso. A alternância de poder na Presidência da República é uma dessas coisas.
Onde existiu e foi respeitada, garantiu a formação contínua de líderes políticos e aperfeiçoou a administração do Estado. E ainda manteve o ocupante do cargo e seu grupo permanentemente preocupados em beneficiar a maioria da sociedade. Justamente pelo fato de poderem ser apeados do poder na eleição seguinte.
Aboli-la ou enfraquecê-la, e falo da alternância de poder na chefia do Executivo, em geral rende os efeitos contrários. Sufoca o aparecimento de novos e melhores líderes (essa inclusive é uma crítica do PT aos governos militares, sobretudo quanto ao movimento estudantil). E ainda afasta gradativamente o dono do poder político dos melhores interesses da sociedade como um todo.
Os presidentes e primeiros-ministros das grandes democracias industriais servem de exemplo para uns. Os déspotas esclarecidos do século 18, para outros.
O terceiro mandato presidencial, pois, nos remete a uma praga que a história eliminou. E que tenta ressuscitar valendo-se da pouca fé democrática de alguns imbecis contemporâneos.
O presidente Lula, é certo, exerce seu poder com base no carisma. Isto é, na crença de que é capaz de fazer coisas impossíveis para outros. Seria muito melhor se todos acreditássemos que o bom governo não depende tanto assim de uma única e abençoada pessoa.
Parece algo tão cristalino que o próprio Lula se nega a subscrever a tese. Até os canalhas, como Palhares, estão acreditando na boa-fé do presidente. |
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