Passado, futuro
O GLOBO - 28/05/09
No dia em que o presidente Barack Obama indicou o nome de Sonia Sotomayor para a Suprema Corte, o escritor William Gibson, fundador da cibercultura, postou em seu Twitter: “Lembram-se quando parecia que o primeiro hispânico na Suprema Corte de Justiça seria Alberto Gonzales?” A diferença entre os dois é que, enquanto ele tentava dar base legal para a tortura, ela desbravava o Ciberdireito.
Os poucos toques do recado de Gibson disseram tudo. A diferença é enorme. Além de atuar em uma nova fronteira do Direito, até então inimaginada, Sonia representa o futuro por vários outros pontos de sua biografia. Alberto Gonzales foi nomeado por Bush para o cargo equivalente ao de ministro da Justiça, no Brasil, e se tornou o “justificador-geral” do governo. Quando seu nome começou a circular para a Suprema Corte, 200 professores de Direito escreveram uma carta aberta ao Congresso e à Casa Branca, dizendo que “Gonzales e outros advogados do governo não cumpriram com sua mais elevada obrigação de defender a Constituição”.
Saiu de um memorando de Gonzales a tese, vitoriosa no governo Bush, de que a Convenção de Genebra sobre os direitos de prisioneiros de guerra não se aplicava à luta contra o terrorismo. Foi ele, também, quem definiu com pouquíssimos termos o que seria considerado prática de tortura por parte de militares e agências de segurança. Gonzales deixou de incluir o afogamento simulado.
A indicação de Sonia Sotomayor, a primeira pessoa de origem hispânica a chegar à Suprema Corte, também está agitando os Estados Unidos. Os republicanos tentam comprovar que ela seria uma juíza partidária. Seu nome ainda terá que ser aprovado pelo Senado. Na blogosfera, ela é um dos temas mais quentes do momento, mas por outras razões: ela é o oposto de Gonzales e é isso que explica a pergunta de Willian Gibson.
Sotomayor nasceu em uma família porto-riquenha no South Bronx, em Nova Iorque, um bairro de latinos e negros empobrecidos nos anos 60 e 70, período em que era violento e discriminado. Famoso por ser o local do celebrado Yankee Stadium, do conhecido time de beisebol, o bairro começou a ser objeto de políticas de renovação, nos anos 80. Com isso, atraiu jovens profissionais de classe média para seus novos condomínios.
Sonia viveu no velho e pesado South Bronx, em um projeto habitacional de baixa renda da prefeitura, onde normalmente o sonho americano acabava em drogas ou à bala. Seu pai era um operário e morreu pouco antes de a menina completar nove anos. Logo depois, Sonia teve a confirmação do diagnóstico de diabetes, numa época em que o tratamento da doença era muito menos desenvolvido. A mãe, enfermeira, trabalhou duro para criar os dois filhos: Sonia e o irmão. Para escapar das dores da perda do pai e da vida em um ambiente tão inóspito, refugiou-se nos livros, que a levaram ao Direito.
Não foi uma aluna qualquer. Nos dois colégios em que estudou antes da faculdade, Blessed Sacrament e Cardinal Spellman, foi a primeira da classe. Ganhou uma bolsa de estudos para Princeton, onde se formou Summa Cum Laude e Phi Beta Kappa, que são duas das maiores consagrações possíveis do mérito acadêmico. Foi uma das ganhadoras do prêmio M. Taylor Prize, a maior honraria concedida por Princeton a um aluno de graduação. Durante a pós-graduação na escola de Direito da universidade Yale, foi editora do “Yale Law Journal” e do Yale Studies in World Public Order.
Ela ainda foi procuradora-geral assistente em Nova Iorque e atuou como litigante comercial da cidade. Considerada uma liberal — progressista na acepção do termo liberal nos Estados Unidos —, a opinião geral é de que é pragmática. Depois de Nova Iorque, fez uma carreira sólida na magistratura, que a levou até a Corte de Apelações, nomeada pelo presidente Bill Clinton e aprovada pela esmagadora maioria do Senado.
Sonia é a mais progressista na lista que o presidente Obama examinou. Por suas decisões, pode ser julgada como mais ao centro, ora pendendo para o lado conservador, como em duas decisões sobre o aborto, ora pendendo para os liberais, como nos casos relacionados a censura, privacidade e direito de opinião na internet. A blogosfera está encantada com a nomeação porque ela é considerada a primeira pessoa a chegar à Suprema Corte que conhece e pratica o Ciberdireito. Para seus antigos chefes, é justa e pragmática. Em um artigo, o “The New York Times” a definiu como uma pessoa de opinião forte, que não se intimida na tribuna, nem diante da imprensa.
O presidente Obama disse que queria alguém sensível aos interesses das pessoas comuns. Isso ela tem de sobra, afinal, é uma pessoa comum, que chegou às altas cortes da Justiça dos EUA, pelo esforço enorme da mãe para educar os filhos, por seu talento e méritos, e pelas políticas afirmativas que permitiram aos talentos das minorias chegarem às universidades da elite. Quem nasceu no South Bronx em 1954 e viveu lá as duas mais turbulentas e sombrias décadas do bairro, especialmente a crise dos anos 70, que empobreceu Nova Iorque, levando-a quase à falência, e chegou à Suprema Corte, é uma pessoa comum, mas com uma biografia incomum.
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