Este artigo destina-se a aumentar a confusão em torno do destino do italiano Cesare Battisti. O Supremo Tribunal Federal julgará o pedido de sua extradição encaminhado pelo governo da Itália, onde a Justiça de um país democrático o condenou a prisão perpétua. Como militante da organização "Proletários Armados pelo Comunismo" ele teria participado do assassinato de quatro pessoas, entre as quais um joalheiro e um açougueiro. Battisti nega a autoria desses crimes.
Os ministros do STF decidirão questões de competência e de legitimidade que estão mais ou menos demarcadas pelas leis. O Judiciário pode extraditar um cidadão a quem o comissário Tarso Genro concedeu a condição de refugiado? O Supremo pode julgar a legitimidade da condenação italiana?
Há outra componente, dominante no debate. Tendo sido condenado pela prática de crimes de sangue, ainda que por motivos políticos, Battisti foi um criminoso comum ou um combatente?
É aí que se instala uma confusão que obriga qualquer juízo a aceitar um legítimo ingrediente de arbítrio pessoal. Há no Brasil inúmeros beneficiários do programa Bolsa-Ditadura que em suas ações armadas mataram pelo menos dez pessoas que nada tinham a ver com o regime ou com a manutenção da ordem. Eram bancários, motoristas ou vigias de estabelecimentos comerciais. Fazendo-se de conta que esses casos não aconteceram, podem-se enumerar três exemplos, a partir dos quais sente-se o peso da toga de ministro do Supremo:
"Georges 1" é um professor francês e em 1943 assumiu a direção do Comitê Nacional de Resistência, braço armado da mobilização comandada de Londres pelo general Charles De Gaulle. Os alemães e o governo do marechal Pétain consideravam "insurgentes" os quadros da Resistência e mataram milhares deles.
"Georges 2" é o ministro das relações exteriores da França. Derrotada a Alemanha, ele caça colaboracionistas e pede ao governo da Dinamarca a extradição do romancista Louis Ferdinand Céline, propagandista antissemita durante a ocupação. Outro escritor, Robert Brassilach, que pedira a execução sumária dos combatentes da Resistência, foi fuzilado. Céline só voltou a Paris em 1951, anistiado.
"Georges 3" é um político que defende o domínio colonial francês na Argélia. Liga-se a militares que tentam um golpe contra o governo de Paris e organizam uma rede terrorista que pratica milhares de atentados e mata cinco mil pessoas. Em 1961, com a prisão do general que comandava a organização, "Georges 3" assume o seu lugar.
Encurralado, foge para a Alemanha, pede proteção do chanceler Konrad Adenauer, mas ele não responde à sua carta. Temendo ser sequestrado, vai para Portugal e pede um visto de entrada nos Estados Unidos.
Barrado, exila-se no Brasil, onde vive de 1962 a 1966 e chega a lecionar Direito no Rio. Beneficiado por outra anistia, "Georges 3" voltou à França em 1968.
Os três Georges foram uma só pessoa: Georges Bidault. Numa mesma vida esteve em todas as pontas do problema, foi caçado por defender a França do general De Gaulle e juntou-se a gente que tentou matá-lo pelo menos vinte vezes. No poder, tentou o recurso da extradição contra um fascista que jamais tocara em alguém.
Como diria Abelardo Chacrinha, Bidault não explica, complica. Todavia, ajuda a pensar. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário