O ESTADO DE SÃO PAULO-07/02/09
Uma das formas mais perversas e cínicas do conformismo mora na ideia de que no Brasil "há uma cultura" que interdita qualquer possibilidade de mudança de hábitos. Aplica-se à lei de Gerson, às pequenas negociatas do cotidiano e às instituições.
Mais correto e revelador de disposição à evolução seria dizer que no Brasil prevalece uma incultura do povo esperto que, mediante alguma tomada de consciência, esforço e consideração a exemplos melhores, pode perfeitamente ser alterada.
O caso do novo corregedor da Câmara, deputado Edmar Moreira - o primeiro vexame patrocinado pelo Congresso já na abertura dos trabalhos de 2009 -, ilustra bem o enunciado.
Ele defende a retirada de mais uma das prerrogativas do Poder Legislativo, de julgar infrações ao decoro parlamentar, e sua transferência para o Poder Judiciário referindo-se ao "vício da amizade" que prepondera e impede o Parlamento de promover processos isentos.
Com uma única frase o deputado Moreira fez o serviço completo: imprimiu à Câmara a pecha de valhacouto de viciados, apresentou suas credenciais de inaptidão para o posto, deformou o conceito de amizade em ato falho explícito e considerou a situação "absolutamente insanável" e, portanto, deixou patente que o mundo é mesmo assim.
E é, mas quando se quer e se aceita que seja. Como os deputados que, a propósito de solução, propõem um jeitinho: mudar o regimento de forma a que o 2º secretário (cargo de Moreira) não acumule mais a corregedoria. Assim, o deputado pode continuar tranquilamente na Mesa Diretora e ainda é poupado do constrangimento de renunciar.
Fantástico. A Câmara é moralmente aniquilada por um dos seus e corrobora o aniquilamento, protegendo-o. Se tivesse algum pudor às faces (atributo grosseiramente traduzido como vergonha na cara), o deputado tomaria a iniciativa de se retirar de cena. Como não tem, reafirma a disposição de continuar e ainda conta com o beneplácito dos colegas.
De partido, inclusive. O DEM divulgou nota oficial pedindo a renúncia de Moreira e anunciando que mandará seu caso para o conselho de ética. É um ato meramente formal, em face da decisão do Supremo Tribunal Federal de que a Constituição dá a posse dos mandatos aos partidos, às pessoas por eles eleitas.
Se isso serve para a legenda reivindicar a devolução de vagas no Parlamento quando o eleito muda de partido sem uma justa causa, serve também para dar à legenda total responsabilidade sobre a conduta de seus parlamentares.
Entre os deveres do responsável estaria, por exemplo, o cuidado de não indicar para um cargo que acumularia a corregedoria um deputado conhecido por absolver seus pares como princípio, sem cotejo das acusações, conforme demonstram o histórico e as declarações do deputado em questão.
O DEM pode dizer o que quiser, menos que a cigana o enganou. Portanto, cabe-lhe mais do que simplesmente um protesto no papel, até como forma de conferir efetividade àquela sentença do STF, muito mais ampla que a simples autorização para perda de mandato em caso de infidelidade por motivo fútil.
Tal entendimento, entretanto, não tem aceitação, é considerado rigoroso, draconiano, quando não farisaico. Uma interpretação das coisas que só prevalece porque, em larguíssima medida, é respaldada pela sociedade.
Seja por preguiça cívica - travestida de proposital indiferença em relação ao que acontece na "ilha da fantasia" - ou por aquela maneira cínica de expressar o conformismo com a "cultura" arraigada aos meios e modos brasileiros.
As sucessivas renúncias de auxiliares nomeados pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, por sonegação de impostos de variadas naturezas, mostra como um "outro mundo" é perfeitamente possível.
Caíram antes de assumir porque suas condutas são socialmente inaceitáveis. O presidente Obama pediu desculpas por uma das nomeações, porque se considera devedor de satisfações ao povo de seu País. Se isso é fruto do puritanismo norte-americano, antes puritanos mentalmente soberanos que permissivos espiritualmente subalternos.
Aqui, as dívidas para com o Estado sequer seriam motivo de escândalo. Ainda mais se as contas fossem acertadas a posteriori como se dispuseram a fazer os americanos flagrados em delito.
No máximo, seriam vistos como equívocos de segunda linha, insuficientes para impedir uma pessoa de "servir ao País".
Benevolência originária de uma visão distorcida do que seja o agente público. Lá, quem em algum momento da vida achou por bem ignorar o cumprimento de seus deveres não está apto a prestar serviço que preste.
Aqui é o oposto. Quem não presta faz qualquer serviço, não presta contas ao público, é defendido da perseguição insidiosa dos moralistas e ainda exibe com orgulho o dístico de legítimo representante da cultura do Brasil.
A propósito: o deputado Moreira chocou por causa do castelo e nada mais
Uma das formas mais perversas e cínicas do conformismo mora na ideia de que no Brasil "há uma cultura" que interdita qualquer possibilidade de mudança de hábitos. Aplica-se à lei de Gerson, às pequenas negociatas do cotidiano e às instituições.
Mais correto e revelador de disposição à evolução seria dizer que no Brasil prevalece uma incultura do povo esperto que, mediante alguma tomada de consciência, esforço e consideração a exemplos melhores, pode perfeitamente ser alterada.
O caso do novo corregedor da Câmara, deputado Edmar Moreira - o primeiro vexame patrocinado pelo Congresso já na abertura dos trabalhos de 2009 -, ilustra bem o enunciado.
Ele defende a retirada de mais uma das prerrogativas do Poder Legislativo, de julgar infrações ao decoro parlamentar, e sua transferência para o Poder Judiciário referindo-se ao "vício da amizade" que prepondera e impede o Parlamento de promover processos isentos.
Com uma única frase o deputado Moreira fez o serviço completo: imprimiu à Câmara a pecha de valhacouto de viciados, apresentou suas credenciais de inaptidão para o posto, deformou o conceito de amizade em ato falho explícito e considerou a situação "absolutamente insanável" e, portanto, deixou patente que o mundo é mesmo assim.
E é, mas quando se quer e se aceita que seja. Como os deputados que, a propósito de solução, propõem um jeitinho: mudar o regimento de forma a que o 2º secretário (cargo de Moreira) não acumule mais a corregedoria. Assim, o deputado pode continuar tranquilamente na Mesa Diretora e ainda é poupado do constrangimento de renunciar.
Fantástico. A Câmara é moralmente aniquilada por um dos seus e corrobora o aniquilamento, protegendo-o. Se tivesse algum pudor às faces (atributo grosseiramente traduzido como vergonha na cara), o deputado tomaria a iniciativa de se retirar de cena. Como não tem, reafirma a disposição de continuar e ainda conta com o beneplácito dos colegas.
De partido, inclusive. O DEM divulgou nota oficial pedindo a renúncia de Moreira e anunciando que mandará seu caso para o conselho de ética. É um ato meramente formal, em face da decisão do Supremo Tribunal Federal de que a Constituição dá a posse dos mandatos aos partidos, às pessoas por eles eleitas.
Se isso serve para a legenda reivindicar a devolução de vagas no Parlamento quando o eleito muda de partido sem uma justa causa, serve também para dar à legenda total responsabilidade sobre a conduta de seus parlamentares.
Entre os deveres do responsável estaria, por exemplo, o cuidado de não indicar para um cargo que acumularia a corregedoria um deputado conhecido por absolver seus pares como princípio, sem cotejo das acusações, conforme demonstram o histórico e as declarações do deputado em questão.
O DEM pode dizer o que quiser, menos que a cigana o enganou. Portanto, cabe-lhe mais do que simplesmente um protesto no papel, até como forma de conferir efetividade àquela sentença do STF, muito mais ampla que a simples autorização para perda de mandato em caso de infidelidade por motivo fútil.
Tal entendimento, entretanto, não tem aceitação, é considerado rigoroso, draconiano, quando não farisaico. Uma interpretação das coisas que só prevalece porque, em larguíssima medida, é respaldada pela sociedade.
Seja por preguiça cívica - travestida de proposital indiferença em relação ao que acontece na "ilha da fantasia" - ou por aquela maneira cínica de expressar o conformismo com a "cultura" arraigada aos meios e modos brasileiros.
As sucessivas renúncias de auxiliares nomeados pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, por sonegação de impostos de variadas naturezas, mostra como um "outro mundo" é perfeitamente possível.
Caíram antes de assumir porque suas condutas são socialmente inaceitáveis. O presidente Obama pediu desculpas por uma das nomeações, porque se considera devedor de satisfações ao povo de seu País. Se isso é fruto do puritanismo norte-americano, antes puritanos mentalmente soberanos que permissivos espiritualmente subalternos.
Aqui, as dívidas para com o Estado sequer seriam motivo de escândalo. Ainda mais se as contas fossem acertadas a posteriori como se dispuseram a fazer os americanos flagrados em delito.
No máximo, seriam vistos como equívocos de segunda linha, insuficientes para impedir uma pessoa de "servir ao País".
Benevolência originária de uma visão distorcida do que seja o agente público. Lá, quem em algum momento da vida achou por bem ignorar o cumprimento de seus deveres não está apto a prestar serviço que preste.
Aqui é o oposto. Quem não presta faz qualquer serviço, não presta contas ao público, é defendido da perseguição insidiosa dos moralistas e ainda exibe com orgulho o dístico de legítimo representante da cultura do Brasil.
A propósito: o deputado Moreira chocou por causa do castelo e nada mais
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