quarta-feira, janeiro 14, 2009

KÁTIA ABREU

Lembrai-vos de 1943!


O Estado de S. Paulo - 14/01/2009
 
Há seis meses - quando todos supunham estar no céu, salvos e gloriosos, com a bolsa em alta, e todos os indicadores que empolgam o orgulho nacional, como a indústria automobilística, batendo seus próprios recordes, etc., etc. e tal - não havia crise. Mas um setor pouco estimado lastreava de realidade esses bons tempos: a agropecuária.

Como era impossível desconhecê-la - posto que gerava 36% das exportações, o ponto mais relevante e visível do bom desempenho da economia -, apelou-se para o neologismo "agronegócio" como álibi para não revisar os preconceitos, caricaturas, grosserias e, principalmente, infâmias gerados por campanhas ideológicas que estigmatizam os produtores rurais ou ruralistas, setor agrícola ou mesmo agronegócio, como queiram. O importante é identificar o setor da economia que gera 24% do produto interno bruto (PIB) e oferece, por meio de seu l milhão de estabelecimentos, grandes, médios e pequenos, 37% das vagas de trabalho no Brasil.

Foi ainda nesse tempo bonança que começamos a refletir sobre um programa de institucionalização do setor a partir do binômio Afirmação & Ruptura, em que agora nos empenhamos como um programa de profunda revisão das relações do setor rural com a sociedade brasileira. O objetivo é ao mesmo tempo definir o que somos (de onde viemos e para onde vamos, realisticamente) e repelir, refutar, desmentir, desmoralizar, desfazer a enorme e insuportável carga de conceitos e ideias que não correspondem à nossa verdade.

E um dos primeiros temas - o primeiro, de fato - foi a questão dos trabalhadores da agropecuária.

Partindo do princípio de que o trabalhador rural é protegido pela lei de forma irrenunciável - ou seja, é a sociedade que lhe assegura direitos, independentemente da sua própria vontade -, ele não é escravo, empregado de segunda categoria ou diferenciado, mas reconhecido pela Constituição como qualquer outro trabalhador brasileiro.

Apresentou-se, então, a questão das denúncias sobre trabalho escravo. Mergulhamos seriamente no tema para compreender os episódios descritos.

A evolução desigual da atividade agrícola no Brasil resultou em lamentável e inquestionável defasagem entre os produtores, seja regionalmente, marginalizando e isolando as regiões remotas, seja em função das culturas cujo processo produtivo evoluiu extraordinariamente em algumas áreas e em outras estacionou. Não se inserindo, por exemplo, na dinâmica produtiva do agronegócio. Sem que se possa justificar ou tolerar, verificaram-se concretamente casos de negligência e desrespeito às regras trabalhistas, pronta e legalmente registradas, denunciadas. Não importa que tenham sido casos isolados, resultado de ignorância e descuido, embora não seja possível, por esses motivos, apelar para qualquer contemporização que estimule o desrespeito à lei. Esta é a nossa afirmação: os produtores rurais defendem intransigentemente a realidade e o respeito à lei. O princípio da legalidade democrática, primeiro e principal compromisso do empresário rural brasileiro.

Passemos, então, à ruptura. Temos de nos livrar não apenas da carapuça do trabalho escravo - que nos jogam na expectativa de que assumamos a ilegalidade e nos comprometamos, pela solidariedade. Mas não podemos deixar de resgatar os que incidiram no erro por atraso ou despreparo. Sindicatos rurais do País inteiro - sob a liderança da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) - estão organizando equipes multidisciplinares que irão de propriedade em propriedade treinando e atualizando os produtores para que não apenas se adaptem exemplarmente à legislação - no que não fazem nenhum favor, pois são obrigados a cumpri-la -, mas atinjam a excelência nas relações com seus empregados. Para nos tornarmos um eficaz observatório das desproteções sociais que afligem os trabalhadores rurais, vítimas dos vazios institucionais que os privam dos serviços de educação, saúde, cultura, lazer disponíveis, não importa como, mas pelo menos existentes, nas cidades.

Na verdade, trata-se de boa oportunidade para discutir um episódio importante da história da agropecuária brasileira. Aconteceu em 1943, quando a demagogia e o populismo excluíram os trabalhadores rurais da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A exclusão criminosa foi oferecida como consolação aos produtores rurais pelo tabelamento irreal dos produtos agrícolas. Por mais dramático e difícil que fosse a adaptação, o princípio da equiparação universal dos direitos do trabalhador não poderia ter sido desdenhado. Muito menos a atividade econômica da agricultura poderia prosperar, engessada, para garantir a estabilidade dos preços dos alimentos. Correram juntos o processo institucional de desvalorização perversa do trabalhador do campo e a marginalização econômica do produtor rural.

Passaram-se 45 anos até que a Constituição de 88 eliminasse irreversivelmente a diferença. O troca-troca imoral ostensivamente consagrado pela CLT desafiava a condição humana - por que o tratamento diferenciado entre trabalhadores urbanos e rurais? - e a teoria econômica, como se fosse possível uma atividade produtiva (francamente inserida no mercado) levitar sem poder reajustar preços conforme seus custos. Ou seja, negaram-se aos produtores rurais os suportes concedidos à indústria. Até hoje prevalecem sequelas dessa diferença de tratamento. 

Querem um bom exemplo?

Com a queda dos preços das commodities - que envolve os principais itens da produção agropecuária do País e deve chegar a até 23%, em dólar -, é estarrecedor que a sorte dos empregos no campo não esteja recebendo a mesma atenção que é dada, por exemplo, aos trabalhadores da indústria automobilística e outras.

Nenhum comentário: