sábado, dezembro 06, 2008

J.R. GUZZO


REVISTA VEJA
Top de linha

"É muito ruim que as suspeitas sejam tantas e tão freqüentes... o Poder Judiciário, pelo menos ele, deveria estar distante desse tipo de confusão"

Numa época de tantas dúvidas em relação ao presente e ao futuro, o cidadão brasileiro sempre pode contar com algumas certezas básicas. Hoje em dia, pelo mundo afora, tudo parece sujeito a virar do avesso de repente, mas nada consegue mudar, no Brasil, um fenômeno com três faces surgido nos últimos anos. A primeira delas é a fascinação dos Tribunais Superiores da Justiça por construir prédios novos para abrigar suas sedes. A segunda é que todos eles têm de ter as dimensões, a pose e o acabamento de palácios. A terceira é que sempre acabam aparecendo, mais cedo ou mais tarde, sinais de que a contabilidade dessas obras apresenta algum tipo de avaria, às vezes avaria grossa. É o que ocorre, segundo se informou na semana passada, com a construção das novas sedes do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e do Tribunal Superior Eleitoral, ambas em Brasília e ambas sob a mira dos auditores do Tribunal de Contas da União. Isso para não falar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais; em outubro, as obras de seu novo edifício, cujos custos já ameaçavam bater nos 550 milhões de reais, foram suspensas.

Tudo começou, como se sabe, com o inesquecível juiz Nicolau dos Santos Neto, que presidiu a construção de um monumento para o Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo na década de 90, foi condenado a 26 anos de cadeia pelo desvio de 170 milhões de reais e hoje cumpre pena em prisão domiciliar. Deu-se, aí, coisa curiosa. O caso, em vez de assustar possíveis imitadores, produziu efeito contrário – na verdade, abriu os olhos dos interessados em ganhar dinheiro com obras do governo para um novo nicho de mercado. Dali para cá, embora ninguém tenha chegado às alturas do juiz Nicolau, formou-se sobre esse tipo de gastos uma nuvem que não foi mais embora. Há denúncias repetidas de sobrepreço, desperdício e estouros de orçamento. Apontam-se falhas em licitações e contratos. Há problemas nos projetos, nos prazos e no custo dos materiais utilizados. As obras vivem metidas em dificuldades com os tribunais de contas e com o Ministério Público.

É muito ruim, naturalmente, que as suspeitas sejam tantas e tão freqüentes – sobretudo quando se leva em conta que o Poder Judiciário, pelo menos ele, deveria estar distante desse tipo de confusão. Mas isso é apenas uma parte do problema. Mesmo que não houvesse irregularidade nenhuma, a situação toda é difícil de engolir quando se olha mais de perto o conjunto da obra – ou, como diriam os corretores de imóveis, o "memorial descritivo" dos edifícios que estão sendo construídos para as cortes mais elevadas da República. É o que há, em matéria de pretensão, ânsia de gastar dinheiro dos outros e deslumbramento em se ver como "top de linha".

No caso do TRF-1, por exemplo, as salas de cada desembargador têm 350 metros quadrados de área útil. Não há como explicar, por nenhum tipo de raciocínio, por que um funcionário público, ou privado, precisaria de 350 metros quadrados para trabalhar. Menos compreensíveis ainda são os 650 metros quadrados destinados ao presidente do tribunal. É coisa para um Luís XV, pelo menos. Barack Obama não tem isso, e daqui a pouco vai ser presidente dos Estados Unidos; o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também não. Lula tem um escritório com um quarto desse tamanho, cerca de 160 metros, e já está mais do que bom – como ele próprio sabe perfeitamente bem, muito pouca gente no Brasil dispõe de um espaço desses para morar com a família toda. Pior ainda, essas obras não servem para nada, do ponto de vista do interesse público – nem os prédios em si, nem os mármores que se põem lá dentro, nem a soma de milhares de metros quadrados que os gabinetes de todos os ministros vão acabar ocupando. A Justiça brasileira não fica nem um pouco melhor nem um minuto mais rápida com nada disso.

Naturalmente, tanto os tribunais como as empreiteiras de obras dão longas explicações para o que estão fazendo; todas elas têm em comum o fato de não fazer sentido. O que há de verdade, no fundo e mais uma vez, é a velha prática do poder público brasileiro de construir o prédio e só depois pensar no serviço que será prestado ali – isso quando se chega a pensar, algum dia, no serviço. O que interessa, mesmo, é a construção. (Se tiver um projeto do escritório Oscar Niemeyer, melhor ainda; vai passar por obra de arte e ele custará muito caro – quase 6 milhões de reais, no caso do TSE.) É o que nos ajuda a entender por que o Brasil, possivelmente, é um campeão mundial de hospitais sem equipamentos, museus sem acervo e bibliotecas sem livros.

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