O jeitinho brasileiro, quem diria, faz 200 anos
Com a vinda da família real para a colônia começou a troca de favores
JORNAL DO BRASIL
O jeitinho brasileiro é onipresente e seu significado, categórico na construção da identidade nacional. Todo mundo sabe o que é e todo mundo sabe que tem. Mas o que ninguém sabe é que o mulato inzoneiro pode ter nascido bem aqui, sobre a Guanabara e sob o abraço do Cristo Redentor. E há 200 anos.
A troca de favores, base do jeitinho que consagrou o povo da terra do pau brasil – e da cachaça, do bumbum e do samba, pra exaltar o lado bom – começou de maneira literária. Com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, a publicação de impressos passou a ser permitida a partir da aprovação prévia da Imprensa Régia. E, com a legalização das impressões, surgiu, no mesmo ano, o sistema das dedicatórias: tanto uma afirmação pública de lealdade e submissão ao soberano quanto uma demonstração da crença na concessão em troca de benefícios.
– O objetivo era abrir caminhos e mantê-los abertos. Oferecer uma obra era esperar receber um cargo público, por exemplo – ilustra Ana Carolina Delmas, mestre em história pela Uerj, traçando um paralelo com a permanência de cargos públicos dentro de algumas famílias e grupos de amigos. – O que são esses políticos todos que têm cargos importantes e empregam a família inteira? É uma troca de favores, a essência da dedicatória no século 19 você vê hoje como conhecimento e troca de favor.
Nesse contexto, incluem-se os cargos de confiança que, para a historiadora, já ilustram semanticamente a permanência das relações de privilégio na sociedade.
– Não é cargo de meritocracia, é cargo de confiança. A pessoa não é escolhida em uma entrevista, e sim pelo conhecimento com alguém de dentro – enfatiza. – A gente ainda tem muito dessas relações de favor, mesmo não impressas em dedicatórias. Dá para entender muito bem a essência do que somos hoje.
A prática, que se concentrava no Rio de Janeiro por conta da proximidade com a corte portuguesa, ilustra o início do século 19 no Brasil e mostra que o carioca já tinha, desde então, noções de sociabilidade às vezes não atribuídas à época.
– É um problema. Ainda estamos muito apegados às instituições. Somos assim: envolvidos na pessoalidade, por mais que queiramos dizer que não – argumenta, ressaltando que, no entanto, o caráter específico das dedicatórias é outro. – A gente nunca parou de fazer. Agora é mais afetiva que o sistema de interesses, dedicamos os livros aos amigos, à família, e a quem a gente gosta.
Para a psicanalista Alice Bittencourt, o brasileiro ainda usa e abusa do jeitinho para compensar a insegurança de pertencer a um país onde as leis não são respeitadas. E um ciclo vicioso é iniciado quando, por não acreditar nas regras, não as cumpre, nem exige seu cumprimento.
– O brasileiro se sente inferiorizado e, de certa forma, acha que não tem capacidade para fazer valerem seus direitos. A partir daí, vai dando seu jeitinho: não cumpre a lei porque não se sente capaz nem de cumpri-las e nem de fazê-las cumprir – critica. – A gente tem a cultura um pouco nesse sentido, para tudo a gente dá um jeito.
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