Conflito existencial
Jornal do Brasil
Julio não pregou os olhos de ontem para hoje. Só de pensar em torcer pelo Vasco perdeu o sono. Um rubro-negro, de dormir enrolado na bandeira, ter que incentivar o Bacalhau à vitória é tão improvável quanto o Protógenes almoçar com o Daniel Dantas. Julio não tem o menor cacoete de vascaíno, nem sabe chegar de carro a São Januário, mas espera que os deuses reconheçam o sacrifício supremo e recompensem seu Flamengo.
– Aqui não! – berrou a mulher, que já amanheceu com a camisa do Fluminense. – Aqui ninguém vai torcer pelo Vasco!
O Vasco, pendurado na beira do abismo – por três dedos – é um adversário direto do Fluminense, pendurado por seis dedos.
– Mas mulher...– ponderou Julio. – É só de mentirinha...
– Como "de mentirinha"? Você finge que torce, mas não torce?
– Eu TENHO que torcer entende? Não é devoção: é obrigação. Você sabe que tenho horror ao Vasco!
– Isso pra mim é esquizofrenia. Ninguém torce por nada a que tenha horror! Não dá para torcer um pouco pelo São Paulo?
– O que? Impossível! Estou com horror do São Paulo! Para mim o São Paulo hoje é o Vasco amanhã
– Só um pouquinho vai...Para ajudar o Fluminense!
– Ajudo o Fluminense e desajudo o Flamengo! Não dá, minha nega. Não tenho mais espaço. Já foi muito difícil acomodar tudo dentro de mim. Veja. O Flamengo vai ficar com 75% da minha torcida, separei 10% para o Vasco e...
– Então – cortou ela. – Sobram 15%! Não dá para dedicar 5% ao Fluminense?
– Não dá, minha fofa. Esses 15% já estão comprometidos com o Vitória contra o Grêmio!
– Por que 15% para o Vitória??
– Porque o Vitória é rubro-negro como o Flamengo! Sinto mais prazer...
A mulher não gostou da explicação:
– Então vai pra casa do Carlos! Aqui só se aceita tricolores, do Rio ou de São Paulo.
Acredita que Julio apareceu lá em casa e me pediu para juntar todos os televisores em um mesmo lugar? Perguntei se ele estava precisando de uma sala de edição.
– É que os jogos do Flamengo, do Vasco e do Vitória são no mesmo horário – disse ele.
– Você não vai conseguir acompanhar os três jogos ao mesmo tempo!
– Claro que vou! Não é a primeira vez que faço isso. Criei uma técnica.
Julio explicou que começaria pelo jogo do Flamengo. "Quando a bola sair de campo passo para São Januário, quando a bola sair vou para o Barradão. Entendeu? É como se eu tivesse um controle remoto no olho. Vou mudando de jogo a cada pausa".
Deu uma trabalheira dos diabos, Julio está de pé quebrado e não ajudou muito a carregar os aparelhos. Quando estávamos sentados no chão acertando aquele emaranhado de fios Marta chegou da Lagoa:
– Que está acontecendo? – perguntou sem entender.
– É que o Julio quer assistir a três jogos ao mesmo tempo!
Marta não liga para futebol. Olhou-nos com cara de poucos amigos e resmungou:
– Vocês acham que é pouco ver 22 caras correndo de calção e chuteiras? Agora tem que ser 66??
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