segunda-feira, agosto 20, 2012

À espera do pior - RICARDO NOBLAT


O GLOBO - 20/08

“Querem correr atrás de quem grita ‘pega ladrão’ ao invés de pegar o ladrão.”
MIRO TEIXEIRA (PDT-RJ), em defesa da imprensa

A se confirmar o que adiantam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em conversas reservadas com jornalistas, a maioria dos réus do processo do mensalão está simplesmente... Como é mesmo que diria o ministro Dias Toffoli, dono de uma linguagem desabrida? A maioria está enrascada. Advogados dos réus pensam da mesma forma. Haverá condenações pesadas, segundo eles. E nomes conhecidos acabarão presos. José Dirceu? Não sei. Mas ele anda pessimista.

ACONTECERÁ DE
 fato o que os ministros segredam? Não sei. Desconfio que nem eles não sabem. Os ministros andam muito salientes. Aprenderam a projetar o que lhes interessa — atitude de verdadeiros pop stars. Mas o que projetam muitas vezes serve para esconder suas intenções.

MAIS DE MIL decisões de peso ou não serão tomadas até o último dia do julgamento. Têm-se uma vaga ideia de que o último dia cairá em meados de outubro. Ou de novembro. O ministro Marco Aurélio não descarta a hipótese de o julgamento terminar apenas no próximo ano.

ESPERA-SE QUE uma vez que começou termine. Afinal, na semana passada, em dado momento, pareciam inconciliáveis as posições de Joaquim Barbosa, ministro-relator, e de Ricardo Lewandowski, minis-tro-revisor. Joaquim queria fatiar a leitura do seu voto. E queria que cada fatia fosse imediatamente votada por seus pares.

LEWANDOWSKI FOI
 contra. Por ele, Joaquim leria as mil páginas do seu voto. Lewandowski leria as 1.400 páginas do seu — o que prometeu fazer bem devagar. Chegaria a vez de os demais ministros. “Será o caos”,’ decretou Joaquim, que ameaçou renunciar à relato-ria. Lewandowski ameaçou renunciar à revisão.

O IMPASSE FOI foi contornado com o aparente recuo de Lewandowski. Ayres Britto, presidente do STF, anunciou que Lewandowski concordara com a forma de votação proposta por Joaquim. De passagem pelo Rio, Lewandowski deu a entender que não foi bem assim.

HÁ DOIS OU três meses a direção do STF definiu o número de cadeiras reservadas para jornalistas, advogados e cidadãos comuns. Acertou como seria o formidável esquema de segurança jamais montado dentro e fora do prédio do STF. Reforçou a segurança de cada ministro. E formatou o calendário de sessões.

ESQUECEU OU não quis reunir os ministros para estabelecer o roteiro das votações. E a maneira de fazê-las. Os ministros são conscientes e orgulhosos dos seus poderes. Nenhum vale mais do que o outro. A presidência é rotativa. As mordomias são iguais. Não cultivam o hábito de se consultar sobre seus votos.

AYRES BRITTO perguntou a um ministro: “Quantas páginas terá o voto de Vossa Excelência?’! A pergunta causou espanto. Que ousadia! O ministro não respondeu. Os votos dos 11 ministros estão prontos ou quase. Mas eles podem mudá-los em cima da hora, até mesmo de improviso.

NO PASSADO
, os tribunais eram patronais e governis-tas. Estão deixando de ser por causa da mídia, do debate travado nas redes sociais e da cobrança da sociedade por maior transparência. Conservadores receiam uma Justiça populista. Seus contrários aplaudem uma Justiça menos vinculada aos donos do poder.

HÁ 30 ANOS,
 uma denúncia como essa do mensalão jamais teria sido aceita pelo STF. Há 20 anos, talvez, mas ao cabo do julgamento não haveria culpados. Agora? O melhor é aguardarmos.

Privatização - AÉCIO NEVES

FOLHA DE SP - 20/08


O Brasil assiste à espetacularização das medidas adotadas pela presidente Dilma Rousseff com o objetivo de fazer o país reagir ao pífio crescimento nacional.



O novo pacote de concessões anunciado para destravar obras já prometidas com pompa e circunstância em várias oportunidades chega com enorme atraso, ainda longe de se materializar em realidade e com uma surpreendente reembalagem, agora como solução para a crônica ineficiência do governo do PT.

Sempre tão criticada pelos ideólogos do petismo, a privatização de rodovias, ferrovias e portos é, em diversas situações, solução necessária para um país refém de gargalos de todo tipo na área da infraestrutura. E o governo poderia fazer muito mais do que tem feito para ampliar os investimentos públicos e estimular os privados, verdadeiras alavancas do crescimento sustentado e duradouro.

Na área do saneamento básico, bastaria desonerar as empresas estaduais que respondem pela quase totalidade dos investimentos no setor, uma das promessas de campanha esquecidas pela presidente. A medida resolveria a contradição das empresas terem que pagar ao governo federal quase o mesmo volume de recursos que têm para investir. Isso em um país em que somente 37% do esgoto é tratado, metade da população não conta com rede de coleta e, entre as cem maiores cidades, somente seis tratam mais de 80% de seus efluentes.

Poucas medidas, no entanto, teriam o poder de destravar tanto o crescimento nacional quanto solucionar a injusta equação da dívida de Estados com a União. Como se sabe, são dívidas contratadas em outra realidade econômica e que hoje poderiam ser renegociadas sob os mesmos critérios que o governo utiliza, via BNDES, para atender a uns poucos setores eleitos da iniciativa privada.

Por que, afinal, o governo não desonera quem pode investir e não transforma em mais investimento parte do pagamento da dívida dos Estados, ressuscitando o nosso federalismo, tão fragilizado?

Registre-se ainda que mais uma estatal acaba de ser criada: a Empresa de Planejamento e Logística, com a tarefa de planejar, definir critérios e negociar com os investidores privados, o que poderia ser feito pela ANTT ou pelo próprio ministério, pois esta deveria ser sua função essencial, e não a de executar obras.

O cronograma prevê para o grupo de nove trechos rodoviários e 12 ferroviários, a assinatura de contratos entre abril e setembro de 2013. Prazos muito pouco prováveis de serem cumpridos, especialmente os que se referem aos novos trechos. Por fim, as novas privatizações dependerão de eficiência, de agilidade e, fundamentalmente, de um artigo raro no governo do PT: capacidade de gestão.

A guerra dos canudos - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 20/08


NOVA YORK - Venho aqui denunciar o Marcelo Tas. Ele não concluiu o curso de comunicação e escrevia para este jornal. Em compensação, ele foi aceito na prestigiada pós-graduação de multimídia da New York University. Como eu sei disso? Conheci o Marcelo quando ele ralava no curso em Nova York. E por que menciono o nome dele, logo no primeiro parágrafo? Para ilustrar um argumento.

A coluna da semana passada, Abaixo o diploma de jornalismo, foi mais lida do que qualquer outro texto que escrevi. Devo isto principalmente ao Marcelo, que tem 3,2 milhões de seguidores no Twitter, e também ao Leo Jaime, que tem perto de meio milhão. Sou seguida apenas por centenas, o equivalente a um punhado de gente na tuitosfera. É o segundo impacto do Marcelo Tas na minha vida. O primeiro foi me levar ao restaurante cubano aqui na Broadway onde, com US$ 7, dava para alimentar a família com arroz, feijão e bife à milanesa, na década de 80.

A repercussão da coluna anterior ilustra o desafio que a mídia digital representa para o jornalismo e não há diploma obrigatório que resolva o problema. Se eu anunciar neste espaço impresso que um pesquisador nova-iorquino está perto de produzir uma vacina contra o câncer, a história vai ter repercussão. Se eu escrever que o meu cachorrinho dá cambalhota e o Marcelo tuitar, a história se torna viral.

No começo de agosto, representantes das seis principais fundações financiadoras de estudos de jornalismo nos Estados Unidos mandaram uma carta aberta aos reitores de universidades americanas pedindo que elas adotem o modelo do "hospital escola". Um dos signatários, Eric Newton, da Fundação Knight, disse que mais da metade dos cursos americanos de jornalismo está perdendo o bonde da mídia digital. E eles não se referem ao puro conhecimento técnico, à capacidade de editar um blog ou manipular imagem. Newton comparou o desafio a aprender uma língua para navegar por um novo universo da informação. Numa entrevista à rádio pública de Minnesota, ele começou dizendo: educação em jornalismo é um espectro vasto demais. A velocidade da mudança só pode ser enfrentada se, como um médico residente, quem estudar jornalismo trabalhar sob supervisão. Ou vai sair da escola "tendo estudado tiro ao alvo sem balas na pistola". Aqui, uma pausa para imaginar quantas entre as centenas de faculdades de jornalismo brasileiras têm currículos que dão munição de verdade aos estudantes.

Numa era em que carregamos no bolso um aparelho de acesso imediato ao que se passa no mundo e a relação entre quem produz e quem consome notícia foi profundamente alterada, o nosso Senado dá o exemplo da avestruz. Passa uma lei que, além de desafiar o bom senso constitucional, contribui para distorcer uma atividade fundamental para a democracia e em processo de transformação radical.

Enquanto isso, duas fundações de pesquisa em educação revelam que apenas um em cada quatro brasileiros domina a leitura e a escrita e apenas 62% dos que chegam à universidade são plenamente alfabetizados.

Acabo de visitar o campus da Universidade de Columbia, onde o nome Pulitzer, no portão principal, homenageia o magnata que insistiu na criação da Escola de Jornalismo. O mesmo Joseph Pulitzer que dá nome ao maior prêmio do jornalismo americano. Até 2002, 59% dos ganhadores do Pulitzer não tinham o diploma que os nossos senadores confundem com excelência nesta atividade.

Quis o acaso que eu esbarrasse num grupo de recém matriculados no mestrado de Jornalismo Impresso - um colombiano, uma espanhola, um indiano e um punhado de americanos. Perguntei a eles o que achavam da obrigatoriedade do diploma. Todos são contra, embora estejam pagando uma nota preta para fazer o curso. "É antitético ao nosso sentido de democracia", disparou logo o mais extrovertido.

E, já que me baixou o espírito da delação, entrego três colegas não diplomados: Sérgio Augusto, Humberto Werneck e Fernando Gabeira. Caro leitor, você acha que este trio, responsável pela minha formação mais do que qualquer curso que frequentei, deve continuar praticando a profissão com impunidade?

Ele quer falar - VERA MAGALHÃES - PAINEL


FOLHA DE SP - 20/08

Com depoimento marcado para dia 29 na CPI do Cachoeira, Paulo Preto discute com tucanos o teor de sua fala, instigada pelo PT na tentativa de melindrar José Serra. O ex-dirigente da empresa responsável pelo Rodoanel se mostra disposto a responder aos congressistas. Apronta extensa lista de documentos que atestariam a lisura dos contratos com a Delta, motivo da convocação. Dirá que os aditamentos de obras sob sua gestão tiveram aval do Ministério Público e do TCE.

Zen 
Depois de causar furor na campanha presidencial de 2010 por sua suposta relação com a coleta de recursos para o PSDB, sempre negada pelo partido, Paulo Preto tranquiliza serristas quanto às menções que fará ao candidato tucano na CPI.

Emocional 
Advogados de réus do mensalão divergem quanto aos efeitos do fatiamento do julgamento, que aumentou a tensão no STF. Há quem considere a medida, embora surpreendente, favorável aos argumentos da defesa, pois permite análise individualizada de condutas.

Racional 
"A fragmentação ajuda a racionalidade e, portanto, ajuda a justiça", diz Alberto Toron, que defende João Paulo Cunha. A condenação do seu cliente, pedida pelo relator Joaquim Barbosa, deve ser submetida hoje ao crivo dos ministros.

Revanche 
Parlamentares do PMDB reagiram à indicação de Bernardo Figueiredo para a empresa de planejamento e logística, que cuidará do plano de concessões, e preparam emendas à MP que vai à Câmara. Peemedebistas afirmam que Dilma Rousseff desrespeitou veto do Senado à recondução de Figueiredo à chefia da ANTT.

Cota pessoal 
No Planalto, interlocutores afirmam que a escolha de Figueiredo é da presidente. E avisam que ela não aceitará retaliações. "É guerra", diz um assessor.

Emprego precoce 
Em seminário quarta-feira, em Brasília, o Conselho Nacional do Ministério Público divulgará estudo que mostra aumento expressivo nas autorizações judiciais para menores de 14 anos entrarem no mercado de trabalho. De 2005 a 2010, o total de licenças passou de 1.283 para 7.481, sendo 55% no Sudeste.

2014 
Aécio Neves gravou mensagens de apoio para candidatos em 192 cidades com mais de 200 mil eleitores de vários Estados. O senador virou o principal garoto-propaganda do DEM, carente de políticos de peso nacional.

Os eleitos 
Além de Fernando Haddad, Nelson Pellegrino (Salvador), Humberto Costa (Recife) e Márcio Pochmann (Campinas) terão a voz de Lula nos respectivos programas eleitorais de rádio já a partir desta semana.

Missão de paz 
Secretários de Geraldo Alckmin traçam hoje à noite roteiro de atividades pró-José Serra. Em jantar na casa do presidente do PSDB paulistano, Julio Semeghini, querem finalmente extrair de José Aníbal, derrotado nas prévias, declaração de respaldo ao candidato.

Blitz 
A ministra Maria do Rosário (Direitos Humanos) pilota amanhã brainstorm sobre a violência policial em São Paulo. O tema será dissecado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Entre os convidados, a defensora pública Daniela Skromov, e Marcelo Zelic, da ONG Tortura Nunca Mais.

Escolta 
Márcio Elias Rosa, procurador-geral de Justiça de SP, destacará hoje força-tarefa para investigar plano de atentado contra o promotor José Heitor dos Santos, de São José do Rio Preto. Ele vem sofrendo ameaças desde que denunciou crimes de improbidade na região.

com FÁBIO ZAMBELI e ANDRÉIA SADI

tiroteio
"Impedir o gasto de 10% do PIB com educação é a atitude mais vergonhosa do governo Dilma. Inexplicável para o povo brasileiro."
DO DEPUTADO IVAN VALENTE (PSOL-SP), sobre o requerimento para protelar
a aprovação do Plano Nacional de Educação, avalizado pela base governista.

Contraponto
Acelerador oficial

Durante a apresentação do PAC das Concessões, quarta-feira passada, assessores apressavam o evento na tentativa de evitar que protesto de servidores federais em greve atrapalhasse o discurso de Dilma Rousseff. O tráfego aéreo em Brasília, contudo, atrasava a chegada de empresários ao Planalto. Paulo Skaf (Fiesp), ao notar que chegara na reta final da solenidade, perguntou:
-Acabei de entrar. Já está terminando?
Um empresário que assistia à cerimônia arrematou:
-Este, sim, é o verdadeiro PAC: Programa de Aceleração do Cerimonial...

Apagão da família - CARLOS ALBERTO DI FRANCO


O ESTADÃO - 20/08


A sociedade assiste, assombrada, a uma escalada de crimes cometidos no âmbito de famílias de classe média. Transformou-se o crime familiar em pauta ordinária das editorias de polícia. O inimigo já não está somente nas esquinas e vielas da cidade sem rosto, mas dentro dos lares. Mudam os personagens, mas as histórias de famílias destruídas pelo ódio e pelas drogas se repetem. A violência não se oculta sob a máscara anônima da marginalidade. Surpreendentemente, vítimas e criminosos assinam o mesmo sobrenome e estão unidos pela indissolubilidade do DNA.

A multiplicação dos crimes em família tem deixado a opinião pública em estado de choque. Paira no ar a mesma pergunta que Federico Fellini pôs na boca de um dos personagens do seu filme Ensaio de Orquestra, quando, ao contemplar o caos que tomara conta dos músicos depois da destituição do maestro, pergunta, perplexo: "Como é que chegamos a isto?". A interrogação está subjacente nas reações de todos nós, caros leitores, que, atordoados, tentamos encontrar resposta para a escalada de maldade que tomou conta do cotidiano.

A tragédia que tem fustigado algumas famílias aparece tingida por marcas típicas da atual crônica policial: uso de drogas, dissolução da família e crise da autoridade. Não sou juiz de ninguém. Mas minha experiência profissional indica a presença de um elo que dá unidade aos crimes que destruíram inúmeros lares: o esgarçamento das relações familiares. Há exceções, é claro. Desequilíbrios e patologias independem da boa vontade de pais e filhos. A regra, no entanto, indica que o crime hediondo costuma ser o dramático corolário de um silogismo que se fundamenta nas premissas do egoísmo e da ausência, sobretudo paterna. A desestruturação da família está, de fato, na raiz da tragédia.

Se a crescente falange de jovens criminosos deixa algo claro, é o fato de que cada vez mais pais não conhecem os seus filhos - e filhos também não se interessam por seus pais e avós. Na falta do carinho e do diálogo, os jovens crescem sem referências morais e âncoras afetivas. Recebem boas mesadas, carros e viagens. Mas, certamente, trocariam tudo isso pela presença dos pais. Sua resposta é uma explosiva combinação de revolta e ódio.

Psiquiatras, inúmeros, tentam encontrar explicações nos meandros das patologias mentais. Podem ter razão. Mas nem sempre. Independentemente dos possíveis surtos psicóticos, causa imediata de crimes brutais, a grande doença dos nossos dias tem um nome menos técnico, porém mais cruel: a desumanização das relações familiares. O crime intra e extralar medra no terreno fertilizado pela ausência. O uso das drogas, verdadeiro estopim da loucura final, é, frequentemente, o resultado da falência da família.

A ausência de limites e a crise da autoridade estão na outra ponta do problema. Transformou-se o prazer em regra absoluta. O sacrifício, a renúncia e o sofrimento, realidades inerentes ao cotidiano de todos nós, foram excomungados pelo marketing do consumismo alucinado. Decretada a demissão dos limites e suprimido qualquer assomo de autoridade - dos pais, da escola e do Estado -, sobra a barbárie. A responsabilidade, consequência direta e imediata dos atos humanos, simplesmente evaporou-se. Em todos os campos. O político ladrão e aético não vai para a cadeia. Renuncia ao mandato. O delinquente juvenil não responde por seus atos. É "de menor".

Certas teorias no campo da educação, cultivadas em escolas que fizeram uma opção preferencial pela permissividade, também estão apresentando um amargo resultado. Uma legião de desajustados, crescida à sombra do dogma da educação não traumatizante, está mostrando a sua face perversa.

Ao traçar o perfil de alguns desvios da sociedade norte-americana, o sociólogo Christopher Lasch (autor do livro A Rebelião das Elites) sublinha as dramáticas consequências que estão ocultas sob a aparência da tolerância: "Gastamos a maior parte da nossa energia no combate à vergonha e à culpa, pretendendo que as pessoas se sentissem bem consigo mesmas". O saldo é uma geração desorientada e vazia.

A despersonalização da culpa e a certeza da impunidade têm gerado uma onda de superpredadores. O inchaço do ego e o emagrecimento da solidariedade estão na origem de inúmeras patologias. A forja do caráter, compatível com o clima de verdadeira liberdade, começa a ganhar contornos de solução válida. A pena é que tenhamos de pagar um preço tão alto para redescobrir o óbvio.

O pragmatismo e a irresponsabilidade de alguns setores do mundo do entretenimento também têm importante parcela de responsabilidade nesse quadro. A valorização do sucesso sem limites éticos, a apresentação de desvios comportamentais num clima de normalidade e a consagração da impunidade têm colaborado para o aparecimento de mauricinhos do crime. Apoiados numa manipulação do conceito de liberdade artística e de expressão, alguns programas de televisão crescem à sombra da exploração das paixões humanas.

As análises dos especialistas e as políticas públicas esgrimem inúmeros argumentos politicamente corretos. Fala-se de tudo. Menos da crise da família e da demissão da autoridade. Mas o nó está aí. Se não tivermos a coragem e a firmeza de desatá-lo, assistiremos a uma espiral de crueldade sem precedentes. É apenas uma questão de tempo.

Já estamos ouvindo as primeiras explosões do barril de pólvora. O horror dos lares destruídos pelo ódio não está nas telas dos cinemas. Está batendo às portas das casas de um Brasil que precisa resgatar a cordialidade captada pela poderosa lente de Sérgio Buarque de Holanda (o pai do Chico) no seu memorável Raízes do Brasil.

Casamento energético - GEORGE VIDOR


O GLOBO - 20/08

Energias eólica e solar poderão dividir os mesmos sítios no futuro. Um casamento perfeito de energia renovável


O Brasil é o país que hoje mais investe, no Ocidente, na chamada energia dos ventos. Esse ritmo (média de 2.000 megawatts por ano, um terço das necessidades da economia) já atraiu onze fabricantes de equipamentos, que precisam se manter atualizados com a rápida evolução tecnológica do setor. As torres das primeiras usinas eólicas não passavam de 50 metros. Já chegaram a cem metros de altura e podem atingir 150 metros, em breve. Quanto mais altas as torres, melhor é o aproveitamento dos ventos. Os aerogeradores também acompanham essa evolução. A Weg, por exemplo, importante indústria de motores elétricos, localizada na Grande Joinville (SC), resolveu entrar nesse mercado com um aerogerador de 1,6 MW, mas antes de lançá-lo teve logo de partir para um equipamento mais potente, de 2,5 megawatts, o primeiro concebido para as caraterísticas dos ventos no Brasil.

O uso do concreto nas torres de sustentação das enormes pás e dos aerogeradores fez surgir "fábricas volantes" nos parques eólicos. Os módulos são montados no próprio local, e quando o parque eólico é concluído a "fábrica" se muda para outra área.

Para conhecer o seu potencial de aproveitamento dos ventos na geração de energia elétrica, o Brasil precisa medi-los durante vários anos seguidos, e as primeiras usinas eólicas brasileiras ainda não completaram duas décadas. Por via das dúvidas, os investidores têm sido bem conservadores e geralmente projetam os seus negócios considerando uma probabilidade máxima de 50% de a intensidade esperada para os ventos na região escolhida se confirmar. Pelo ritmo atual de investimentos, o Brasil supostamente levaria mais 150 anos para aproveitar seu potencial de energia eólica.

A maior parte dos parques eólicos brasileiros fica hoje no litoral do Nordeste, especialmente nos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, em áreas pouco habitadas e quase sem uso pela agricultura. O Rio Grande do Sul aparece na terceira posição. Como o Nordeste é uma zona muito ensolarada, a presidente-executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica, Elbia Melo, acredita que em futuro próximo será possível combinar usinas movidas pelo vento com outras fotovoltaicas. O aproveitamento da energia solar ainda é muito caro, mas segue uma curva declinante que se assemelha à que ocorreu com a energia eólica no passado recente. O aproveitamento das duas formas de energia em um mesmo sítio serviria para torná-las mais competitivas.

Élbia sempre se dedicou profissionalmente ao setor elétrico, com passagem pelo governo. Ano passado enveredou pelo mundo novo da energia eólica, e estará agora à frente de um grande evento sobre o setor que será realizado no Rio, no fim deste mês.

Muito devagar

Raul Pinho, embaixador do Trata Brasil (organização que se dedica a analisar a situação do saneamento básico no país), atualizou por iniciativa própria a série histórica que a entidade usara por sete anos e chegou a um resultado pouco animador. As cidades que aparecem nas melhores posições são as mesmas de sempre, assim como as piores. As melhores se concentram em São Paulo, e as piores no Norte, sobressaindo-se Porto Velho (Rondônia) e Macapá (Amapá). A esperança que esse quadro mude está na contrapartida exigida por conta da construção das hidrelétricas do Madeira, pois os investidores realizarão obras de saneamento básico em Porto Velho, que ainda despeja seu esgoto no rio. Também na lanterna estão cidades da Baixada Fluminense, contribuindo fortemente para a poluição da Baía de Guanabara. Um novo plano está saindo do papel, renovando a promessa de despoluição.

O saneamento básico é atribuição municipal, mas as companhias estaduais é que prestam o serviço. Em algumas cidades concessionários privados assumiram essa tarefa. A parceria público-privada tem se mostrado na prática um bom modelo, enfrentando, porém, a resistência de companhias estaduais. Quando elas investem, optam por levar água aos domicílios, deixando de lado a coleta e o tratamento de esgoto. Só que todo mundo sabe que 80% da água fornecida viram esgoto depois.

Na ponta do Caju

A Libra reviu seu projeto de ampliação do terminal de contêineres na ponta do Caju, no Porto do Rio, e não vai mais aterrar a área que servirá de retaguarda ao prolongamento do cais, que poderá receber dois grandes navios. Se fizesse o aterro, a Libra teria de esperar um ano e meio pela acomodação do terreno. O grupo resolveu então construir uma laje reforçada, apoiada em estacas. A água do mar circulará por baixo. As obras começam ainda este ano.

Linha intermunicipa - MELCHIADES FILHO

folha de sp - 20/08


BRASÍLIA - Exagera quem trata a eleição de prefeitos como preliminar da corrida presidencial. Mas erra quem subestima o impacto nacional do resultado nas cidades.

As chapas não são montadas somente para atender demandas imediatas dos municípios. Elas visam, também, catapultar nomes, testar discursos, ensaiar alianças.

José Serra só foi o adversário de Dilma Rousseff em 2010 porque ganhou a eleição para prefeito de São Paulo em 2004. Ele vinha de três derrotas majoritárias (1988 e 1996, na cidade, e 2002, à Presidência). Seria difícil sobreviver a outra.

Não fosse aquela vitória serrista, a cara do PSDB hoje seria outra. A fila teria andado, e Aécio Neves, se firmado como liderança nacional.

Ainda em 2004: se Marta Suplicy tivesse sido reeleita, talvez o PT não estivesse de joelhos diante de Dilma. Lula teria opção que não a de inventar uma candidata "do nada".

O PSD só existe por causa de uma eleição municipal. Não houvesse renovado o mandato em 2008, Gilberto Kassab não teria adquirido musculatura para fundar do zero o quarto maior partido do Congresso.

No Rio, Sérgio Cabral, se vitorioso no segundo turno em 1996, teria motivo para ficar no PSDB, em vez de virar o mais entusiasmado cabo eleitoral de Lula no Sudeste.

Foi como vice-prefeito de Belo Horizonte que o tucano Eduardo Azeredo despontou, em 1989. Sua ascensão política correspondeu à formação de uma máquina poderosa de arrecadação ilegal, tão eficiente que chamou a atenção do rival PT e, anos mais tarde, foi convidada a se instalar no governo Lula. Talvez o valerioduto tivesse se expandido de toda maneira, mas, sem a gênese mineira, não haveria o mensalão ora em julgamento no STF.

A campanha dos candidatos a prefeito pega fogo a partir de amanhã, com a propaganda na TV e rádio. Uma certeza: muitos envolvidos já (só) pensam no passo seguinte.

Candidaturas pobres - JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO

O ESTADÃO - 20/08


O julgamento do chamado mensalão afetou a eleição de prefeito, mas não como se imaginava. Somado ao escândalo de Cachoeira, o efeito de horas e horas de programação televisiva sobre o mensalão acabou sendo maior entre os financiadores do que entre os eleitores. Está faltando dinheiro para a campanha eleitoral.

Basta ver a penúria da primeira parcial das prestações de contas dos candidatos a prefeito nas capitais.Os valores previstos em dezenas de milhões estão sendo contados aos milhares.

Os poucos que gastaram mais do que isso o fizeram por conta. Ou seja, fazem campanha na base do fiado.

Contraditoriamente, os tetos de gasto de campanha apresentados pelos comitês à Justiça Eleitoral nunca foram tão altos. Em São Paulo, projeções de receitas triplicaram em comparação ao pleito de quatro anos atrás. Obviamente a correção aplicada não foi apenas a da inflação. Os tesoureiros abriram espaço em suas planilhas para abrigar os antigos "recursos não contabilizados".

Por enquanto, porém, o dinheiro não está sendo contabilizado nem pelo caixa 2 nem pelo 1. Potenciais doadores têm muito frescas na memória as cenas de advogados de banqueiros e empresários apresentando a defesa de seus clientes no Supremo Tribunal Federal. Ou o exemplo da Delta, uma ex-rica doadora eleitoral que foi da prosperidade à bancarrota em apenas uma CPI.

Os céticos dirão que, mais cedo ou mais tarde, os interessados de sempre pingarão suas contribuições salvadoras nos cofres partidários. É bem provável. Até porque a gratidão pelas doações tardias será ainda maior do que de hábito. Mas o estrago já estará feito. A campanha foi encurtada para 50 ou 60 dias. Neófitos que precisavam se tornar conhecidos terão menos tempo para chegar aos olhos, ouvidos e dedos dos eleitores.

Tempestade perfeita. Desde 2002, a campanha eleitoral petista tacha José Serra (PSDB) de o candidato do medo. Por essa definição, vota no tucano quem teme ver hordas bárbaras invadirem o centro próspero. Mas a última década produziu uma invasão às avessas, uma onda de prosperidade consumista a banhar a periferia. Ermelino Matarazzo ficou mais parecido com a Mooca, não o contrário.

No começo da atual campanha eleitoral paulistana, a questão a ser respondida em 2012 parecia ser: o eleitor de Ermelino vai votar mais parecido com o da Mooca,ou o da Mooca como de Ermelino? Na primeira hipótese daria Serra;na segunda, Fernando Haddad (PT). Mas aí Celso Russomanno (PRB) cresceu, apareceu, e o binômio PT-PSDB ficou insuficiente para resumir a eleição.

De onde apareceu Russomanno? Uma explicação é que Haddad é desconhecido, e o candidato do PRB ocupou o vácuo no eleitorado petista. Outra é queo paulistano está cansado das mesmas caras.Uma terceira, que há eleitores antipetistas que acham Serra um bom candidato a presidente, mas não um bom candidato a prefeito. Todas estão corretas.

Russomanno vai se sustentar na liderança? Ele tem um quarto do tempo de TV de Serra e Haddad. Ao contrário dos adversários, não tem as máquinas dos governos federal, estadual e municipal a apoiá-lo. Daqui para frente sua força é inercial. Veio da exposição na TV Record, da Igreja Universal do Reino de Deus e de sua imagem de conciliador e defensor do consumidor. E agora? Depende menos dele do que dos adversários.

Para Russomanno cair, Haddad tem que crescer. A maior superposição do voto no candidato do PRB é com o eleitorado petista.O pequeno crescimento de Haddad no mais recente Ibope já desacelerou Russomanno. Mas, para chegar ao segundo turno contra Serra, Haddad precisaria ao menos trocar os seus 11% de intenção de voto na zona petista pelos 30% de Russomanno. Mesmo assim seria o segundo colocado, e por uma margem muito apertada.

Nem só de votos petistas vive o fenômeno Russomanno, porém. Não está claro qual o tamanho do buraco que ele pode provocar no eleitorado de Serra.Entre maio e julho,fez o tucano perder cinco pontos porcentuais na zona antipetista da cidade. Mas a sangria parou em agosto. Só esperando o efeito do horário eleitoral para saber se a ferida cicatrizou ou não.

O que aconteceria se Haddad chegasse aos 30% na zona petista, a 10% no resto e, ao mesmo tempo, Russomanno equilibrasse a disputa com Serra em todas as regiões da cidade? A definição do segundo turno seria no olho mecânico. Qualquer combinação seria possível: Serra x Haddad, Serra x Russomanno ou até Russomanno x Haddad. A atual eleição paulistana é tudo, menos previsível.

Supremo blá-blá-blá - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 20/08


Abraham Lincoln levou pouco mais de dois minutos para pronunciar o discurso de Gettysburg (1863), às vezes considerado a maior peça de oratória em todos os tempos. Ninguém esperaria encontrar tamanho talento para a concisão no Supremo Tribunal Federal brasileiro, mas o contraste ressalta que falar muito não significa ter muito a dizer.

Os maus hábitos da linguagem empolada e da expressão prolixa continuam a prosperar no Judiciário; no Supremo, ainda mais em julgamento momentoso como o do mensalão, chegam ao apogeu. Nem mesmo certas vulgaridades, salpicadas por alguns dos advogados da defesa, alteraram a sensação do leigo de assistir a um espetáculo obscuro e bizantino.

Não há dúvida de que a Justiça deve examinar cada aspecto com cuidado, nem de que muitos aspectos são alvo de controvérsia. Ainda assim, será necessária tamanha verbosidade, reflexo, aliás, da extensão interminável dos autos, a versão escrita de cada processo?

Seria incalculável o benefício, no sentido de reduzir a morosidade judicial, caso se disseminasse uma disciplina retórica mais objetiva, direta e sucinta. Parece haver tendência recente nessa direção, mas que ainda não alcançou os tribunais superiores, muito menos o Supremo Tribunal Federal.

Admita-se, no atual julgamento, que o revisor Ricardo Lewandowski parece adotar uma estratégia de lentidão, à qual seria levado, conforme se especula, pela tendência a absolver e pelo desejo de inviabilizar o voto, tido por adverso, de seu colega Cezar Peluso, que se aposenta no início de setembro. No desmesurado da fala, entretanto, encontra eco na maioria dos ministros.

À prolixidade nos processos, somou-se a loquacidade fora deles. O costume começou há mais de dez anos, quando ministros passaram a discorrer sobre quase qualquer assunto, a pretexto de que assim prestavam contas e faziam do Judiciário um Poder menos fechado.

Conforme sublinhou o constitucionalista Joaquim Falcão nesta Folha, a lei proíbe os magistrados de se manifestar sobre qualquer processo em curso e criticar atos de seus colegas. Também neste quesito, um pouco mais de parcimônia e contenção viriam a calhar.

Quando tantas atenções se voltam para a Justiça, esse não é um quadro estimulante, ainda mais se permeado pelos rompantes de suscetibilidade exagerada, resvalando para um narcisismo pueril, nos quais se destaca o relator Joaquim Barbosa, sem que lhe faltem, porém, rivais em redor.

SEGUNDA NOS JORNAIS


Globo: Serviços parados – Greve já custou R$ 1,2 bilhão em 7 anos
Folha: PF ultrapassa fronteiras para combater o tráfico
Estadão: Defesa de réus do mensalão se une contra julgamento fatiado
Valor: “Invasão” chinesa inflaciona mercado de pedras preciosas
Estado de Minas: Convocados Para Copa
Jornal do Commercio: Dengue recua no Estado
Zero Hora: A reação – Detran promete fechar depósito onde veículos são depenados na Capital

domingo, agosto 19, 2012

O lado bom da desindustrialização - MAÍLSON DE NÓBREGA


REVISTA VEJA
A Revolução Industrial transformou a Inglaterra na maior potência do século XIX. Por isso, a industrialização passou a ser vista como o meio para alcançar padrões superiores de desenvolvimento. Até hoje, "país industrializado" é sinônimo de país rico. Assim, no século XX, a industrialização foi prioridade mundo afora. Ainda hoje, a ideia de que a indústria é o centro dinâmico da economia povoa muitas mentes, para as quais o setor é a base do crescimento. A ele caberia disseminar o progresso técnico, irradiando efeitos para a frente e para trás na cadeia produtiva.
Fala-se em desindustrialização nociva ao Brasil, mas vários estudos descartam a ideia. Regis Bonelli e Samuel Pessôa, em artigo publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (2010), constatam o declínio da participação da indústria no PIB - de 36% em 1985 para 16% em 2009 -, mas mostram que se trata de fenômeno mundial. A nossa participação é que era excessiva. por causa do fechamento da economia. Recentemente, a indústria nacional tem sofrido perdas alarmantes de competitividade, mas a explicação básica é conhecida: salários acima da produtividade e piora do "custo Brasil" (sistema tributário caótico, legislação trabalhista anacrônica, infraestrutura deteriorada e burocracia excessiva).

A perda de participação da indústria em todo o mundo aumenta, naturalmente, a dos serviços, que é de quase 80% do PIB nos países desenvolvidos. No Brasil, os serviços saltaram de 53% do PIB em 1990 para 67% do PIB em 201 1. Muitos se preocupam, pois acham que os serviços não geram ganhos relevantes de produtividade, que é a fonte essencial da elevação do potencial de crescimento. Esse raciocínio vale para serviços prestados aos consumidores, como os de cabeleireiro, motorista, empregado doméstico e semelhantes. mas não é sempre assim.

De fato, embora a indústria continue importante, os serviços assumirão a liderança que a ela pertenceu, na geração de empregos e produtividade, da Revolução Industrial até meados do século XX. Já é assim na economia americana, conforme provou Enrico Moretti, da Universidade da Califórnia em Berkeley, no livro The New Geography of Jobs (2012). Para ele. a geografia do emprego tem mudado profunda e irreversivelmente nos Estados Unidos. Os eixos de inovação em serviços são as novas engrenagens da prosperidade. Eles envolvem os setores de alta tecnologia: design e software de produtos como o iPhone e o iPad, tecnologia de informação, ciências médicas, robótica, equipamentos médicos, novos materiais e nanotecnologia. A produtividade cresce nesses setores graças ao avanço tecnológico.

Pesquisas de Moretti mostram que nos Estados Unidos um emprego criado nos setores de alta tecnologia gera outros cinco. Na indústria, essa relação é de apenas um para 1,6. Os centros de alta tecnologia demandam relativamente mais profissionais de nível universitário, de alta qualificação e maiores salários. A renda mais elevada aumenta a procura por serviços de médicos, engenheiros, arquitetos, personal traineis e outros, como os ligados ao lazer e ao turismo. Esses profissionais ganham mais do que seus pares que trabalham em regiões desprovidas desses centros.

Áreas de alta tecnologia - casos de Vale do Silício, Austin, Boston, San Diego, Nova York. Washington e Dallas - são aglomerações (clusters) dotadas de ecossistemas com oferta adequada de crédito, capitais, recursos humanos qualificados e serviços de elevada eficiência em propaganda, assessoria jurídica, consultoria de gestão, engenharia e expedição de produtos. A educação é a base da inovação nesses centros. Para Moretti, os mercados emergentes que investem bem em educação e inovam tenderão a trilhar o mesmo caminho. A China já produz mais patentes do que a Alemanha e a França. E o efeito. entre outros, de sua excelente política educacional.

O Brasil precisa de reformas para aumentar a competitividade da indústria e preparar-se para competir nos promissores segmentos dos serviços. Isso exige uma revolução na educação, nas instituições e, assim, no ambiente de negócios. Preferimos, todavia, reeditar políticas industriais de uma época que passou.

Como escapar de uma maldição - CARTA AO LEITOR


REVISTA VEJA
Nesta edição, VEJA estreia uma nova seção, dedicada ao pré-sal. Ela acompanhará, numa cobertura intensiva, a extração dessa extraordinária riqueza brasileira e as mudanças que com ela emergirão - e que terão reflexos na economia, mas também no comportamento, na demografia, no consumo e na tecnologia do país. A criação de uma seção em VEJA ocorre sempre que alguns fenômenos transcendem sua natureza e passam a ter impacto em outras esferas. Foi assim com a seção Vida Digital. Ela surgiu como reconhecimento de que a tecnologia transbordou de sua calha original. De uma área do conhecimento que parecia fundamentalmente destinada a produzir aparelhos cada vez menores, transformou-se em um fenômeno sociocultural que mudou a maneira como nos relacionamos com o mundo.
A seção dedicada ao pré-sal começa com uma visita da reportagem de VEJA às dez cidades brasileiras que, ao longo da última década, mais foram beneficiadas pelo dinheiro dos royalties. A reportagem revela cenários que atestam que a exploração de petróleo em águas profundas da costa brasileira, em quantidade e qualidade fabulosas, já começou a mudar os contornos do país. Mas também confirma o que a história demonstrou mais de uma vez: que a riqueza do subsolo não se traduz imediatamente em distribuição de riqueza e melhoras sociais - e que a "maldição do petróleo" é um perigo sempre à espreita. Essa maldição pode resultar do fenômeno conhecido como "doença holandesa", em que a valorização cambial provocada pela descoberta de uma riqueza natural acaba por tirar o fôlego da indústria, que, cada vez mais dependente do governo, se enfraquece, prejudicando o crescimento de um país. A situação ocorreu na Holanda nas décadas de 70 e 80 depois da descoberta das reservas de gás natural. Mas a co1Tupção, o desperdício de recursos e a falta de planejamento para gastá-los também costumam atrair outra espécie de infortúnio revelada na forma de regimes políticos sustentados pelo assistencialismo e assolados pela miséria, como no caso da Venezuela.

O Brasil reúne todas as condições para transformar a riqueza do seu subsolo em capacitação tecnológica, aumento do nível educacional e geração de empregos de altíssima especialização.

A nova seção é uma contribuição de VEJA para que o Pré-sal escape das velhas maldições - e ajude a trazer à tona a verdadeira riqueza de um país: aquela que modifica para melhor a vida de sua população.

A modernização institucional - PAULO GUEDES


REVISTA ÉPOCA

Na CPI, no julgamento do mensalão e nas medidas para destravar o mercado, o Brasil busca seu futuro
Prosseguem em duas frentes as difíceis batalhas pela modernização de nossas instituições. No front político, o julgamento do mensalão e a CPI do Cachoeira. No front econômico, as greves do funcionalismo público federal e as medidas de cunho "capitalista" preparadas pela presidente Dilma Rousseff. Uma improvável mas concreta aliança entre a "esquerda" e os "conservadores", sempre em nome da "governabilidade", acabou se tornando um formidável impedimento à modernização institucional brasileira.
O abraço de Lula e Maluf é o símbolo dessa aliança. Na verdade, tucanos e petistas praticaram a mesma fórmula, atolando nossas instituições no pântano de uma transição inacabada do Antigo Regime para a Grande Sociedade Aberta.

Sofremos dos males dessa transição incompleta. A concentração dos poderes políticos, a hipertrofia do Estado e a centralização administrativa são maldições de regimes fechados que ainda não erradicamos. "O poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente", afirmou o político liberal britânico Lord Acton (1834-1902). "Tudo dependia de um poder central. E a centralização sobreviveu à realeza derrubada, surgindo um poder absoluto de ferocidade ainda maior que o das monarquias", disse o historiador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) sobre a degeneração dos ideais democráticos no Terror jacobino.

A construção de uma sociedade aberta exige incessante aperfeiçoamento institucional. O julgamento do mensalão tem, por isso, dimensão histórica. Vai muito além de tecnicalidades jurídicas, que distinguem "caixa dois" como crime e "recursos não contabilizados" apenas como lapso. Vai também muito além da feroz disputa de poder entre tucanos e petistas. A dimensão histórica do julgamento virá de sua leitura simbólica pela população. Está em jogo o futuro de nossas práticas políticas.

Os petistas estão hoje no banco dos réus com o mensalão. Mas houve também acusações contra os tucanos em episódios como a emenda constitucional que permitiu a reeleição de FHC, as privatizações e o mensalinho na campanha de Eduardo Azeredo para o governo de Minas Gerais. Como veio, logo depois, o mensalão do DEM, com José Roberto Arruda no Distrito Federal. E surge agora a CPI do Cachoeira, atingindo o governador Marconi Perillo, do PSDB. "As piores características do sistema centralizado não são acidentais, e sim suas consequencias inevitáveis", afirmou o economista austríaco Friedrich von Hayek (1899-1992). "É por isso que os menos escrupulosos e os mais desinibidos são cada vez mais bem-sucedidos nesse ambiente. Em nome de nobres ideais, mergulha-se em atmosfera moral cada vez mais deformada, em que os fins justificam os meios e os piores são os que chegam ao topo."

Práticas políticas degeneradas são o resultado da concentração de poderes e da centralização administrativa. A inegável corrupção sistêmica prossegue em escalada até o mensalão, "o mais ousado esquema de corrupção e desvio de dinheiro público, o mais grave atentado que já tivemos à democracia brasileira", segundo o procurador-geral da República, Roberto Gurgel. A desmoralização de nossa classe política é um sintoma da transição inacabada para uma sociedade aberta. "Nada é mais fértil do que ser livre, mas nada é mais árduo do que o aprendizado da liberdade", disse Tocqueville sobre os desafios de uma nova ordem democrática.

Enfrentamos dificuldades semelhantes na dimensão econômica. De olho na criação de empregos, na estabilidade das expectativas inflacionárias e no crescimento futuro, a presidente resiste à escalada de greves do funcionalismo público federal. As pressões dos sindicatos por reajustes salariais astronômicos são descabidas. Os salários dos servidores públicos federais já foram reajustados bem acima da inflação nos últimos anos. Houve mesmo expressiva transferência de renda da população contribuinte para o funcionalismo público federal. Isso causou uma ampliação contínua de gastos públicos em consumo corrente - com despesa de pessoal -, em detrimento dos investimentos públicos em infraestrutura.

Com empregos garantidos, salários e aposentadorias mais altos que no setor privado, os servidores públicos simplesmente ignoram a guerra mundial por empregos. Suas greves ameaçam desestabilizar os orçamentos públicos, desorganizar as cadeias produtivas e recrudescer as expectativas inflacionárias. O sindicalismo exacerbado e o corporativismo anacrônico, patrocinados por uma social-democracia obsoleta, estão entre os males que devastam a economia europeia.

A presidente Dilma resiste ao cerco dos sindicalistas, afirmando que sua prioridade é "assegurar empregos para aquela parte da população que é a mais frágil, que não tem direito à estabilidade, que sofre por estar desempregada". Seu governo continua examinando a desoneração das folhas de pagamentos das empresas por meio da redução de encargos sociais e trabalhistas que incidem sobre o custo da mão de obra. Esses encargos são armas de destruição em massa das oportunidades de emprego no Brasil. "Queremos todos os brasileiros empregados", diz Dilma. A redução dos encargos pode criar milhões de empregos formais na economia, custos mais baixos para as empresas e maiores salários para os trabalhadores.

Outra medida sob exame seria reduzir impostos para derrubar o preço da energia elétrica. Os impostos praticamente duplicam o custo de nossa energia e tiram competitividade de nosso parque industrial. Transformam uma energia barata, à base de usinas hidrelétricas, numa energia mais cara do que a de países com matrizes energéticas menos favoráveis. Uma renúncia fiscal pode baixar substancialmente o preço da energia industrial.

De olho na redução dos encargos trabalhistas para criar milhares de novos empregos, na redução de impostos para derrubar custos industriais, defender nossa competitividade, os empregos existentes e o crescimento futuro, Dilma enfrenta as pressões dos sindicalistas. Anuncia também, em busca da reaceleração do crescimento econômico, um programa de concessões nas áreas de infraestrutura para disparar investimentos privados em portos, rodovias, aeroportos e ferrovias. São armas capitalistas em busca do crescimento perdido.

Não parecia eu - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 19/08


Já deve ter acontecido com você. Diante de uma situação inusitada, você reage de uma forma que nunca imaginou, e ao fim do conflito se pega pensando: que estranho, não parecia eu. Você, tão cordata, esbravejou. Você, tão explosivo, contemporizou. Você, tão seja-lá-o-que-for, adotou uma nova postura. Percebeu-se de outro modo. Virou momentaneamente outra pessoa.

No filme Neblinas e Sombras (não queria dizer que é do Woody Allen pra não parecer uma obcecada, mas é, e sou) o personagem de Mia Farrow refugia-se num bordel e aceita prestar um serviço sexual em troca de dinheiro, ela que nunca imaginou passar por uma situação dessas.

No dia seguinte, admite a um amigo que, para sua surpresa, teve uma noite maravilhosa, apesar de se sentir muito diferente de si mesma. O amigo a questiona: “Será que você não foi você mesma pela primeira vez?”

São nauseantes, porém decisivas e libertadoras essas perguntas que nos fazem os psicoterapeutas e também nossos melhores amigos, não nos permitindo rota de fuga. E aí? Quem é você de verdade?

Viver é um processo. Nosso “personagem” nunca está terminado, ele vai sendo construído conforme as vivências e também conforme nossas preferências – selecionamos uma série de qualidades que consideramos correto possuir e que funcionam como um cartão de visitas.

Eu defendo o verde, eu protejo os animais, eu luto pelos pobres, eu só me relaciono por amor, eu respeito meus pais, eu não conto mentiras, eu acredito em positivismo, eu acho graça da vida. Nossa, mas você é sensacional, hein!

Temos muitas opiniões, repetimos muitas palavras de ordem, mas saber quem somos realmente é do departamento das coisas vividas. A maioria de nós optou pela boa conduta, e divulga isso em conversas, discursos, blogs e demais recursos de autopromoção, mas o que somos, de fato, revela-se nas atitudes, principalmente nas inesperadas. Como você reage vendo alguém sendo assaltado, foge ou ajuda? Como você se comporta diante da declaração de amor de uma pessoa do mesmo sexo, respeita ou debocha?

O que você faria se soubesse que sua avó tem uma doença terminal, contaria a verdade ou a deixaria viver o resto dos dias sem essa perturbação? Qual sua reação diante da mão estendida de uma pessoa que você muito despreza, aperta por educação ou faz que não viu? Não são coisas que aconteçam diariamente, e pela falta de prática, talvez você tenha uma ideia vaga de como se comportaria, mas saber mesmo, só na hora. E pode ser que se surpreenda: “não parecia eu”.

Mas é você. É sempre 100% você. Um você que não constava da cartilha que você decorou. Um você que não estava previsto no seu manual de boas maneiras. Um você que não havia dado as caras antes. Um você que talvez lhe assombre por ser você mesmo pela primeira vez.

Fatiados & aliados - DENISE ROTHENBURG

CORREIO BRAZILIENSE - 19/08


Em tempo de mensalão em fatias no Supremo Tribunal Federal (STF), a palavra virou moda na política. Os petistas, por exemplo, tratam tudo agora como fatias. É fatia do eleitorado, fatia de aliado e fatia de sindicatos que puxam greves e por aí vai. A forma como o governo Dilma Rousseff decidiu lidar com os movimentos grevistas dos servidores públicos deixou os petistas fatiados entre a administração comandada pelo partido e as categorias que por muito tempo servem de base ao PT. Especialmente no Distrito Federal e no Rio de Janeiro, onde vive a massa dos servidores federais. Existe um mal-estar no partido que se considera derrotado independentemente do desfecho dessa queda de braço.

O PT e seus aliados sempre se mostraram solidários às categorias em greve. Agora, essa solidariedade está tão fatiada quanto o julgamento do mensalão. Os grevistas, aos quais os petistas são ligados, apostam em manter a greve. O Ministério do Planejamento, comandado pelo PT, considera que vai sufocar as paralisações cortando pontos e exigindo o retorno ao trabalho, levando as categorias a aceitar a proposta de reposição inflacionária de 18% com pagamento em três anos. No meio dessa praça, está o partido.

Para o PT de Brasília não poderia ser pior. Afinal, a sensação que se tem é a de que grande parte dos sindicatos começa a migrar para legendas que tentam resgatar a origem partidária, em especial, o PSol, que vem crescendo no embalo daqueles que têm me mente o antigo jeito de ser e de viver do PT. A volta às aulas da UnB, por exemplo, vem no rastro de uma briga política em torno das eleições da categoria. Em outros setores, ouve-se diariamente os sindicalistas reclamando do Partido dos Trabalhadores, que antes era mais solidário e agora diz apenas que se deve aplicar a lei. Ou seja, os sindicatos, antes aliados, agora podem se voltar contra o partido que ajudaram a levar ao poder. Ninguém duvida que, logo ali, na próxima eleição, o PT perderá mais um naco da sua base.

Por falar em aliados...

Alguns episódios em política se repetem a cada eleição. Em 2010, o então ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, deixou a pasta para ser candidato a governador da Bahia. Ele e o presidente da República desfrutavam de uma relação cordial, contavam piadas juntos, riam, trabalhavam com alegria, era tudo muito bom. Tão bom que Geddel tinha convicção de que Lula não iria forçar a mão pró-Jaques Wagner. Errou. Na hora do vamos ver, Lula jogou seu peso em prol de Wagner.

Guardadas as devidas proporções e personagens, uma vez que Geddel não era digamos, o dono do partido, o mesmo ocorre agora com o governador de Pernambuco, Eduardo Campos. Campos aposta na sua relação com o ex-presidente para afastar o peso da imagem de Lula e da presidente Dilma de campanhas como a de Recife, Belo Horizonte e Fortaleza. Especialmente, depois que o próprio Eduardo jogou seu peso político para fazer a vontade do PT em São Paulo na campanha de Fernando Haddad.

Os petistas são unânimes em citar as cidades onde o PT e o PSB são adversários como aquelas prioritárias para o engajamento de Lula. Também falam da necessidade de colocar nesses locais a participação da presidente Dilma Rousseff, ainda que indiretamente. Com Lula na tevê e nas rádios, a ideia é fazer com que ele cite a presidente Dilma. A lógica dessas citações é a de que, se ele indicou Dilma e o eleitorado tem a sensação de que está dando certo, o mesmo vale para o município. A diferença é que, nas cidades, o eleitor não precisa de ninguém que lhe diga o que funciona e o que está errado. Geralmente, em pleitos municipais, citações desse tipo não têm tanto efeito. Vamos ver se agora terão.

Por falar em causa & efeito...

Os peemedebistas têm sentido falta do senador Jader Barbalho (PMDB-PA) nas reuniões para definir estratégias político-partidárias e conversar sobre cenários e conjunturas. Jader, entretanto, depois de tantos problemas, está recolhido em tratamento de saúde. E já avisou que só quer exercer este mandato de senador. Não será candidato a mais nada. Em tempo: seu mandato vai até 2018, quando ele completará 74 anos. Ou seja, se aposentará mais novo do que José Sarney (PMDB-AP) que, aos 82 anos, comanda o Senado.

A forma como o governo Dilma Rousseff decidiu lidar com os movimentos grevistas dos servidores públicos deixou os petistas fatiados entre a administração comandada pelo partido e as categorias que por muito tempo servem de base ao PT.

A igualdade social no boteco - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O Estado de S.Paulo - 19/08


- Tu tá com uma cara que eu vou te contar! Que foi que houve, isso tudo já é tristeza antecipada pela derrota? O jogo ainda é às seis e meia, até lá tu pode fingir que é feliz, pode até sonhar que o Flamengo vai se dar bem. E não precisa chorar, que não vai ser de goleada, o Vasco não está aí para humilhar ninguém, nem mesmo o Flamengo, não precisa.

- Eu não sei de onde você tira essa sua arrogância. O que é o Vasco?

- O Vasco é uma caravela gloriosa, desbravando os sete mares e navegando serenamente para ancorar no posto de campeão brasileiro!

- Ah, bom, campeonato de vela, isso eu não discuto. Eu pensei que você ia se referir ao vice-campeonato de futebol que vocês vão pegar, como é da tradição do teu time. Vocês do Vasco deviam computar o número de vice-campeonatos que já ganharam, de repente dá para criar uma nova categoria para consolar os vascaínos: campeão dos vices, o maior vice-campeão da história do futebol brasileiro. Brasileiro, não; mundial, acho que esse campeonato mundial é do Vasco. A não ser que vocês também sejam vices dos vices.

- Qual é, cara, tu, como representante de um urubu de asa despencada, um timeco que se daria mal na série C, um...

- Tudo bem, não vamos brigar por causa de futebol. A vida não se resume a futebol, tem muita coisa mais importante.

- Domingo, num boteco do Rio de Janeiro, não tem nada mais importante do que chope, futebol e mulher.

- É verdade, mas eu não posso evitar o que venho sentindo. Eu tenho pesadelos. Essa noite mesmo, eu tive, acordei suando. Sério mesmo, cara, eu acho até que vou consultar um psiquiatra, isso não pode ser normal.

- Ah, é por isso que você chegou aqui meio estranho hoje.

- É, eu agora dei para ficar minhocando esse negócio e dei para ter esses pesadelos, já é o terceiro ou quarto. É uma espécie de assombração, que resolvi chamar de cotismo. É o medo do cotismo.

- Do quê? É doença nova? Se for, não me conta, que eu começo logo a sentir os sintomas. Vou ter um AVC e um infarto a qualquer momento e amanheço de dengue todo dia.

- Não, doença não. É um problema sociopolítico.

- Ah, cara, não vamos entrar nessa de discutir o Brasil, o mensalão, a ladroeira, pelo menos no domingo vamos dar um tempo, ninguém aguenta.

- Não é o mensalão, é bem mais grave. O cotismo é o seguinte: é a nova política nacional para a eliminação das desigualdades.

- Pior do que comunismo, não? Eu só sinto falta deles quando é para botar a culpa em alguém. Era sempre culpa deles e pra mim continua sendo.

- Eles vão dizer que, com a adoção de cotas...

- Eles quem?

- Eles, eles, eles! Eles estão em toda parte, mandam na nossa vida e cada vez vão mandar mais! Eles! Agora eu tenho certeza de que, quando passar esse negócio do mensalão, eles vão adotar cota para tudo. Eu tive um professor, naquele tempo em que tinha professor, que dizia: "senhores, a sábia mão do homem ainda vai destruir o universo!" É verdade, é verdade!

- Mas não vai ser agora, podemos pedir uns pasteizinhos.

- Aí é que você se engana, já está começando agora e vai se estender a tudo. Ao futebol mesmo, por exemplo. Futebol rende muitos problemas por falta de proporcionalidade em vários aspectos e falta de oportunidades para todos. Primeiro eles vão regulamentar as escalações: tem que ter cota racial. Cada jogador declara sua raça e aí a escalação mantém o equilíbrio racial através das cotas. Poderemos ver o Wagner Love declarando que se chama Wagner porque é de família alemã de pai e mãe e o Loco Abreu alegando que é zulu. Mas aí isso não resolve a desproporção entre as torcidas, de maneira que eles vão implantar as cotas de torcida. Cada torcedor será cadastrado numa torcida, devendo apresentar seu cartão de torcedor juntamente com o ingresso. Quando uma torcida ultrapassar o número de torcedores previsto pela cota, o torcedor tem de escolher outro time, em benefício de paz social e, em última análise, em seu próprio benefício. É um assunto complexo, mas nós temos parlamentares à altura das necessidades. Uma coisa é certa: não será permitida uma desproporção gritante, como existe hoje, por exemplo, entre a torcida do Flamengo e a do Olaria, a lei garantirá a todos os times o direito de ter torcedores. E digo mais. Não tem crime de falsidade ideológica? Pois vai ter crime de falsidade clubista. O camarada que for pegado torcendo por um time, mas portando a carteira de outro, perde o registro e não pode mais frequentar estádios, precisamos de leis severas.

- Você está delirando outra vez, eu nunca sei quando você está falando sério.

- Eu não estou delirando nada. Nem falei sobre as outras cotas dos times de futebol. Uma das primeiras a entrar na pauta vai ser a cota dos originários de comunidades carentes, logo seguida das dos jovens infratores em recuperação, dos homossexuais, da terceira idade, dos nativos do Estado onde fica a sede do time e por aí vamos, inclusive na Seleção.

- Você não acabou o segundo chope e já está de porre. Não está vendo que esse tipo de coisa nunca vai dar certo?

- Eu estou. Mas eles não, é por isso que eu me apavoro. Vai ter cota de mulher, pode escrever. Pra cada cinco gatas com quem você sair, vai ter que encarar uma dragonete, é a justiça social.

Se eu pudesse - DANUZA LEÃO

FOLHA DE SP - 19/08


Iria recomeçar a vida em outra cidade, talvez em outro país, para nada, só para começar tudo do zero


Se eu pudesse, mudava minha vida toda; não que ela esteja ruim, mas só para ver que ela pode ser diferente.

Se eu pudesse, me desfaria de muitas coisas, da minha casa e de quase todas as roupas. Afinal, quem precisa de mais do que dois pares de sapatos, dois jeans, quatro camisetas e dois suéteres, sobretudo quando anda pensando em mudar de vida?

Se eu tivesse muitas joias, enterrava todas elas na areia da praia para que um dia alguém enfiasse a mão brincando, assim para nada, e tivesse a felicidade de encontrar um colar de brilhantes. Afinal, dá para viver sem, não dá?

Das algumas garrafas de champanhe guardadas cuidadosamente, na horizontal, daria para abrir mão, sem nenhuma possibilidade de remorso futuro; champanhe, além de engordar, não passa de um espumante metido a alguma coisa, e nem barato dá, de tão fraquinho que é. Dos vinhos, mais fácil ainda; nada melhor do que o velho e bom uísque, com o qual sempre se pode contar.

E as amizades? Aliás, as amizades, não: as relações. Ah, se tivesse coragem, compraria um novo caderno de telefones e passava só aqueles pouquíssimos nomes que realmente têm algum significado, e que são tão poucos que nem precisaria escrever. Guardaria todos de cor, não na cabeça, mas no coração, e um dia me esqueceria de todos eles.

Se eu pudesse, iria recomeçar a vida em outra cidade, talvez em outro país, para nada, só para começar tudo do zero. Para às vezes sofrer bastante, pensando que poderia ter tido mais juízo e não ter feito tantas bobagens, pois se tivesse errado menos poderia ter sido mais feliz -talvez. Mas alguém tem o poder de fazer alguém sofrer, ou a capacidade do sofrimento é um bem pessoal e intransferível?

Se alguém conseguisse ainda me fazer sofrer, seria um acontecimento a ser festejado.

Se eu pudesse -e não tivesse

tantos compromissos-, seria vegetariana, passaria as noites em claro e teria muito amor pelos animais e pelas crianças. Mas como tenho horror a qualquer bicho e nenhuma paciência com criancinhas, a não ser com meus bichos e minhas crianças, vou ter que atravessar a vida levando essa pesadíssima cruz -afinal, ficou combinado que de certas coisas não se pode não gostar, e se não se gostar não se pode dizer, que vida.

Se pudesse, largaria tudo e iria embora para um lugar onde ninguém me conhecesse, onde não teria passado nem futuro; para um lugar esquisito no qual não entenderia a língua do povo nem ninguém entenderia a minha. Seríamos todos, assumidamente, estranhos -como somos no edifício onde moramos, no local de trabalho, dentro de nossa família. Ou você pensa que alguém conhece alguém porque dá beijinhos no elevador?

Se eu pudesse, quando acordasse hoje de madrugada saía descalça só com um casaco em cima da pele e ia molhar os pés na água do mar, sozinha. Depois, ia tomar um café no balcão de um botequim, como fazem os homens.

Se eu pudesse, rasgava os talões de cheques, cortava os cartões de crédito com uma tesoura, fazia uma linda fogueira com os casacos de pele e ia saber como é que vivem os que não têm, nunca tiveram e nunca vão ter nada disso. E aproveitava o embalo para cortar os fios dos telefones, jogar o celular na tela da televisão e o computador pela janela -deve ser lindo, um computador voando.

Se eu pudesse, raspava a cabeça, acendia dois cigarros ao mesmo tempo e tomava uma vodca dupla, sem gelo, num copo de geleia. E pegaria uma gilete para picar em pedacinhos a carteira de identidade, o passaporte e o CPF, sem pensar um só instante nas consequências e sem um pingo de medo do futuro.

E jogava na lata de lixo meus lençóis, meus travesseiros de pluma, meu cobertor e engolia minhas pestanas postiças, só para aprender que a vida não é só isso.

Se eu pudesse, esquecia o meu nome, o meu passado e a minha história e ia ser ninguém. Ninguém.

Se eu pudesse, não, se eu quisesse.

Pois é, tem dias que a gente está assim, mas passa.

GOSTOSA


Ora bolas - LUIS FERNANDO VERISSIMO


O Estado de S.Paulo - 19/08


Antigamente as bolas tinham a cor do couro com que eram feitas. Bolas pintadas de branco só no vôlei ou em jogos de futebol noturnos. Usavam uma bola por jogo de futebol oficial, de campeonato. O que me fazia sonhar com montes de bola usadas uma só vez estocadas em algum lugar, uma visão do paraíso. A bola única só podia ser substituída, com autorização do juiz, em caso de perda de esfericidade, que era o nome científico de murchamento.

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Quando a bola espirrava para fora do campo, era devolvida pelo público para que o jogo continuasse. Talvez nada na nossa história recente tenha a importância simbólica deste fato: no tempo da Número 5 cor de couro a torcida devolvia a bola. Se a bola demorasse a voltar para o campo havia manifestações de impaciência do resto da torcida e quem retinha a bola era hostilizado. Não se sabe se a torcida passou a ficar com a bola quando começaram a usar várias por partida ou se foi algo no nosso caráter que mudou. Há quem atribua a uma reversão dos polos magnéticos da Terra lá pelos anos 40 e 50 a deteriorização do caráter do brasileiro. Não sei, mas uma das suas primeiras manifestações foi não devolverem mais a bola.

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A bola era branca em jogo noturno porque ajudava a visibilidade, com a iluminação artificial. Depois se deram conta de que o branco também favoreceria a visibilidade de dia, pois seu contraste com o verde do gramado era maior do que o do marrom. Agora as bolas já não são mais brancas. Tem tantos desenhos e grafismos que mal se vê o branco. Algumas bolas novas são marrons. Mas não o marrom das antigas bolas de couro. Um amarelo cocô-de-criança. Os goleiros estão se queixando de que ela é mais difícil de pegar, mas talvez estejam só com nojo. E o contraste com o verde decididamente piorou.

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Teoria: pelo menos no Brasil, o futebol foi ficando mais feio à medida que a bola ficava mais bonita, Hoje quem mais brilha nos gramados é a bola e o jogador brasileiro está com ciúmes, o que explicaria a forma como a maltrata. Seria o caso de voltarmos ao branco básico ou então ao ainda mais básico, o marrom/couro. Ou então - por que não? - à bola com tento e cordeamento, para o futebol reaparecer. Ou então eu é que fiquei tão inconformado com a nossa derrota para o Mexico nas Olimpíadas que estou delirando.

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Marisa Monte cantando Villa Lobos, Sorriso o Gari sambando e no fim o Pele aparecendo para ser ovacionado. Estava bem representado o Brasil que as pessoas esperam ver em 2016 no encerramento das Olimpíadas de 2012? Levando-se em conta que o tempo para sua apresentação era escasso, o resumo foi bem escolhido. Já o resto da festa de encerramento foi ainda mais maluca do que a festa de inauguração, com os ingleses recorrendo a todos os clichês conhecidos a seu próprio respeito e ainda ressuscitando o John Lennon, o Fred Mercury, o Churchill e as Spice Girls.

O julgamento de Frineia - CARLOS HEITOR CONY

FOLHA DE SP - 19/08


RIO DE JANEIRO - Dentro de escassas oportunidades, venho acompanhando o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal.

Impossível (e inútil) ouvir todos os debates, de qualquer forma, acho que há exagero no tempo e nas palavras dos respeitáveis ministros. Reconheço que a linguagem e os detalhes são peculiares à prática da Justiça, mas acho que a tecnologia pode abreviar as sentenças e pareceres sem perda do conteúdo processual.

Na Roma antiga e na Grécia, em alguns tribunais, o imperador ou os juízes (no caso da Grécia central) condenavam ou absolviam os réus de maneira mais simples: levantavam a mão direita e colocavam o polegar para baixo: era a condenação à morte. Se o polegar estivesse para cima, era a absolvição. Em ambos os casos, a justiça seria feita.

Ficou famoso o caso de Frineia, cuja formosura despertou paixões e ciúmes. Acusada por um pretendente desprezado de explorar o próprio corpo, foi levada a um júri de cidadãos ilibados. No momento da sentença, os juízes botaram o polegar para baixo. Era a condenação fatal. Olavo Bilac tem um poema dedicado ao julgamento de Frineia: segundo o poeta, ela despiu os véus que a cobriam e surgiu toda nua, "no triunfo imortal da Carne e da Beleza".

Diante daquela monumental escultura, um a um os polegares dos juízes foram subindo, subindo, sendo provável que também subissem outras partes dos respeitáveis membros do júri.

Não estou sugerindo um retorno à Antiguidade clássica. Mas um parecer ou voto de 70 laudas, que exige cinco horas para ser lido, podia ser condensado num único polegar, quer dizer, em 11 polegares para baixo ou para cima.

Desde que o Marcos Valério não se obrigasse a ficar nu em plenário para ser absolvido.

Em números - SONIA RACY


O ESTADÃO - 19/08


Daniela Cembranelli, defensora-geral de São Paulo, fez as contas e chegou a resultado surpreendente: dos 17,6 mil habeas corpus originários do Estado, impetrados no STF ano passado, 7,8 mil foram propostos pela Defensoria Pública.

Ou seja, quase 50% das ações foram na defesa dos que não podem pagar advogado próprio.

Em números 2
A profissão de defensor, aliás, está em alta. Em concurso realizado este ano havia 6.669 inscritos para… duas vagas.

Tempo ao tempo
Os radiologistas que tratam de Lula são unânimes: sua barba pode voltar em três meses.

Bem como deve haver uma retração das sobras de pele no pescoço do ex-presidente.

Arte da arte
Com o objetivo de captar recursos para a mostra Panorama da Arte Brasileira em 2013, o MAM promove a Festa Panorama, quinta-feira.

Convidados? 800.

Jogo jogado
Ousada a missão de Ídolos Kids, reality show da Record que estreia em setembro, com comando do ator Cássio Reis.

A atração será exibida às quartas-feiras, no mesmo horário do futebol na rival Globo.

Se a moda pega…
Está dando o que falar nas agências brasileiras proibição, na Inglaterra, de campanha da Nike via Twitter.

O Conar local considerou que posts de Wayne Rooney e Jack Wilshere faziam propaganda não-explícita da marca.

Pioneira no uso de madeira certificada, Etel Carmona vê, não raras vezes, suas peças serem comparadas a joias ou à alta-costura. Entretanto, mais do que o culto ao belo, a designer preocupava-se com o meio ambiente – antes mesmo de a sustentabilidade entrar em pauta. “Sempre fui de optar pela contramão”, brinca. Agora, ela resolveu abrir sua loja nos Jardins para exposição de peças. “Todo mundo me pedia e eu relutava”. Nesta leva, obras reeditadas de Paulo Werneck, e unidades de Roberto Micoli e Marcelo Cipis. Mote? O casamento entre arte e design. “Beleza é fundamental. Funcionalidade e qualidade também”. Dia 28.

Responsabilidade social
A Tiffany & Co arma mais uma edição do Bingo do Bem em prol do projeto social da Fundação Oftalmológica Dr. Rubem Cunha. Dia 29, na joalheria do Cidade Jardim.

Já o Bingo da Obra do Berço acontece no próximo domingo. No Leopolldo Itaim. Convites a R$200.

A Cãominhada, com apoio da Camargo Corrêa, espera juntar 400 cães prontos para adoção. Em busca de um dono, os bichanos desfilarão no Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo. Dia 26.

A Wonder chamou Tinico Rosa, tatuador, para estampar as camisetas que serão vendidas na loja da marca. Com verba 100% revertida para a ONG Adote um Gatinho. Sábado.

A TIM invadiu a Paraisópolis. Está revitalizando pontos comerciais da favela.

Marcela Rocha e Danilo Mesquita passarão dois anos em uma expedição marítima pelo mundo para coletar o lixo plástico dos oceanos. Içam velas em novembro.

A Universidade Anhembi Morumbi se juntou com o Hospital Sírio Libanês para estimular a doação de sangue. Farão um trote solidário na unidade da Vila Olímpia. Terça.

APhilips vai levar um grupo de empresários para fazer trabalho voluntário na comunidade do Chapéu da Mangueira, no Rio.

A Childhood Brasil avisa: promoverá o Encontro Empresarial do Programa Na Mão Certa para discutir a violência sexual nas rodovias do país. Quarta-feira.

As razões de cada um - MERVAL PEREIRA


O GLOBO - 19/08


A condução dos trabalhos do julgamento da ação penal 470, popularmente conhecida como "a do mensalão", é talvez a tarefa mais delicada que o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ayres Britto, enfrentou em sua carreira. Graças à sua capacidade de alcançar consensos o processo, depois de sete anos de tramitação, chegou a julgamento.
Mas também devido a seu temperamento ameno, o presidente do STF muitas vezes é criticado por permitir que personalidades fortes como a de muitos ministros da Corte se sobreponham aos interesses da maioria.
É dentro dessa estreita faixa entre a busca de acordos e a imposição da autoridade do cargo que Ayres Britto se movimenta, em busca de um julgamento "com racionalidade, operacionalidade, urbanidade e segurança", para deixar o STF em novembro com a sensação de ter cumprido um dever.
A cada bate-boca em plenário, cresce a importância de ter na presidência neste momento um homem afável e respeitado como Ayres Britto.
Os desentendimentos entre os ministros nas primeiras sessões não chegaram a macular o julgamento, embora seja desejável que eles se mostrem capazes de chegar a consensos antes que as divergências venham a público.
Mais do que ao temperamento de cada um dos envolvidos, atribui-se a interesses específicos as posições tomadas tanto pelo relator Joaquim Barbosa quanto pelo revisor Ricardo Lewandowski, cada um representando um polo no julgamento.
Ao revisor, porém, não cabe necessariamente o papel de contraponto ao relator, função que Lewandowski assumiu em declarações públicas, o que de antemão demonstrou seu pendor contra a acusação.
Ele vê no relator uma tendência a se alinhar com o Procurador-Geral da República, o que Barbosa considera "uma ofensa", pois pressupõe que comece seus trabalhos com parcialidade.
Não é normal que a tarefa do revisor tenha tanto destaque, e por isso não se ouviu falar em revisor protagonista de um julgamento antes do mensalão.
No que se refere à sua incumbência direta, Lewandowski aprovou o relatório de Barbosa com um erro evidente, que teve que ser corrigido pelo pleno do STF.
O processo contra o argentino Quaglia foi anulado graças ao trabalho de um anônimo defensor público, que denunciou irregularidades que deveriam ter sido detectadas pela revisão do processo.
Diz-se que os ministros do STF são 11 ilhas, por decidirem isoladamente, sem o espírito de coletividade. Mas pelo menos uma questão preocupa o conjunto: a credibilidade da Corte.
O maior elogio que se pode fazer ao STF, a esta altura do julgamento, é que ninguém tem certeza do veredicto final, embora se possam fazer tentativas de adivinhar o voto de um ou outro membro a partir de atitudes passadas.
Mesmo que as provas dos autos devam determinar a decisão dos juízes, as circunstâncias em que os fatos ocorreram dão à narrativa, tanto da acusação quanto da defesa, mais ou menos credibilidade.
Por isso é que o relator Joaquim Barbosa fez questão de separar em partes seu voto, para contextualizá-los.
Mesmo fatos ocorridos fora dos autos, e que estão na vida cotidiana, que não para enquanto o julgamento prossegue, têm interferência na decisão dos juízes.
Foi o caso da decisão do TCU validando a apropriação da agência de Marcos Valério dos bônus de volume que, por contrato, deveriam ser do Banco do Brasil.
Essa decisão, revogada em seguida, poderia dar a sinalização ao Supremo de que, em vez de representar desvio do dinheiro público, como quer a acusação, tratava-se de uma atitude empresarial normal.
Mesmo não sendo possível se apoiar na nova lei sobre lavagem de dinheiro que está em vigor para acusar um réu, pois quando os crimes foram cometidos a lei era outra, mais restrita, os ministros não ignoram que novos conceitos sobre esse crime de caráter internacional estão sendo aplicados com o objetivo de melhorar o combate ao crime organizado.
Nesse mesmo tópico entra o livro do ex-deputado petista Antonio Carlos Biscaia, que foi o presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara em 2005.
Ao relatar pressões que diz ter sofrido por parte de Dirceu para que não fosse à frente o processo de sua cassação e, anteriormente, a relação do então Chefe do Gabinete Civil com o deputado Roberto Jefferson, ele dá mais informações sobre como se passavam as coisas no Palácio do Planalto à altura do escândalo do mensalão.

Isso é fichinha! - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 19/08


Você conhece o tipo. É alguém contar um caso - e lá vem a criatura:

- Isso não é nada! Fichinha perto do que aconteceu comigo...

"Comigo" ou com fulano - não importa: importa é passar um rolo sobre a história precedente e impor a sua como vencedora. Nem precisa ser um relato de grandes feitos, no qual o protagonista pontifique como herói. Não se trata de narrar façanha edificante; ao contrário, muitas vezes ser história triste ou feia, não raro condenável e até mesmo repulsiva. Tanto faz; campeão, nessa porfia, é quem conta o melhor conto.

Não faltam, claro, intervenções destinadas a glorificar alguém, em geral o narrador. Vai me dizer que você nunca viu, na sala de embarque do aeroporto (Miami, Orlando, Buenos Aires), compatriotas nossos que, com aquele excesso de decibéis característico de brasileiros em viagem, alardeiam ter comprado coisa melhor e muito mais em conta.

No bairro onde cresci havia uma senhora cujos filhos, a seu ver e contra várias evidências, deixavam no chinelo qualquer um das vizinhanças. Verdade que tomavam bomba, mas por incompreensão dos professores, despreparados para lidar com inteligências tão acima da média. Só num ponto, vejo hoje, teria aquela dona direito a contar vantagem: se os filhos das outras fumavam maconha, os dela, além de pitar, plantavam. No telhado do lar. Pena que mamãe não soubesse da autossuficiência tabagística de sua prole.

Elizabeth Bishop, numa carta, conta que a companheira, Lota de Macedo Soares, foi fazer compras num povoado perto de onde moravam, na serra fluminense - e o feirante, ao saber que a poeta americana ganhara um importante prêmio em seu país, reivindicou sua parte nele:

- Eu dou sorte às freguesas - gabou-se, pesando as batatas. - Tem uma que outro dia ganhou uma bicicleta numa rifa.

No meu já longo trato com todo tipo de contador de vantagem, estou em condições de afirmar que são mais frequentes os relatos de infortúnios. Doença, morte, miserê. Tive uma faxineira (não, não é aquela que ia ao "espermercado") incapaz de ouvir caso ou notícia ruim sem reagir de bate-pronto, ainda quando não tivesse munição à altura. Alguém tinha morrido naquela madrugada? A Rosa não se dava por derrotada: e eu que não preguei o olho, de tanta dor de cabeça? Tinha sempre uma doença do dia - zoeira nos ouvidos, tremeliques numa pálpebra, uma pontada aqui, ó.

Para gente como a Rosa, o câncer do nosso pai nem de longe se equipara aos tumores que carcomeram as vísceras da mãe de alguém, em sofrimentos muito mais pungentes. O assalto de que fomos vítimas é pinto se comparado ao sofrido por beltrano. Conheço certa matriarca que ao botar em livro a saga da sua vida se esmerou em "melhorar" os casos, de modo a torná-los piores, isto é, mais tristes e dramáticos, daí resultando uma catadupa de vicissitudes que a autora, quem duvidaria?, magnanimamente soube superar.

Nos meus remotos 22 anos, tive em Bariloche uma namorada que me proporcionava qualquer chance (quase toda, vá), menos a de suplantá-la no terreno da desgraceira. Nenhum infortúnio por mim relatado chegava aos pés dos que a Ana desfiava, enquanto nos enregelávamos às margens do Lago Nahuel Huapi. Talvez só a desdita de quem, namorando em portunhol, chafurdava inexoravelmente em climas de tango e bolero: Te quiero, mi vida, jamás te olvidaré, bésame, cariño, bésame mucho - e tome saraivadas de !!! e ¡¡¡.

Derrotado de saída no quesito linguístico, ainda tive a pretensão de competir com a moça, cujas histórias, cada vez mais dramalhosas, iam aniquilando meus gaguejantes enredos. Joguei a toalha quando ela me soterrou com as desventuras da órfã que seus pais pegaram para criar: não bastasse à moça ter nascido sem um braço, o noivo lhe pespegou um par de chifres, o que a obrigou a matá-lo, embora o amasse, com três tiros, ¡pum! ¡pum! ¡pum!, antes de enforcar-se no jardim, donde la encontraron colgada, la pobrecita.

Não sei como não balbuciei:

- Ganaste, mi tesoro...

(Tenho a impressão de ouvir aí alguém dizendo que já leu crônica muito melhor sobre gente que sempre tem uma história insuperável).