FOLHA DE SÃO PAULO 19.02.2023
O mercado religioso trata a fé como commodity e usa a miséria de todos nós
A vida é muitas vezes insuportável e as religiões nos dão uma esperança de poder torná-la menos insuportável
A fé é uma commodity e as religiões a disputam. Alguém pode dizer que sempre foi assim. Dizer isso é como comparar as velhas feiras dos burgos onde se vendia comida e outras bugigangas com a sociedade capitalista.
A sociedade capitalista é um sistema global que se caracteriza, além de outras coisas, pelo fato de que só tem futuro o que vira produto. À medida que se agrega valor financeiro a algo, imediatamente ele começa a responder dentro da dinâmica da mercadoria. E nessa dinâmica o que importa é aumentar o PIB do player religioso.
Essa dinâmica é marcada pelo estágio da midiatização da religião que começa com o televangelismo dos anos 1970 nos Estados Unidos. Sendo a mídia o mercado de conteúdos por excelência, as religiões se transformaram em empresas de conteúdo que formam ministros religiosos no marketing mais do que na teologia ou sistemas mitológicos.
Com as redes sociais, esse processo se radicalizou e ficou mais barato. Uma das marcas da sociedade capitalista é a emergência de uma microfísica da competição que é fundamental no processo de destruição dos players dentro do mercado em questão.
Uma vantagem do mercado religioso sobre outros é seu custo relativamente baixo para quem paga pela adesão e pelo que ganha em retorno —um produto que tem a característica de ser infinito e maleável, ou seja, a fé.
A fé tem uma plasticidade gigantesca e é adaptável às mais diversas situações e narrativas. A fé nunca acaba porque ela está ancorada na experiência profunda do desamparo dos seres humanos, como diz Freud no seu memorável "Futuro de uma Ilusão".
A vida é muitas vezes insuportável e as religiões nos dão uma esperança de poder torná-la menos insuportável. Nada há de racional nisso, por isso é tão poderosa. Tudo que é ancorado na razão é frágil, já o que é ancorado na miséria é sempre poderoso.
A violência entre os players religiosos é clássica, sempre foi. Hoje, ela se tornou passível de gestão de conteúdos e comportamentos segmentados. Falar mal dos competidores, inclusive no plano das ideologias políticas, marca nichos específicos no mercado da fé.
Esse fato pode aparecer em toda e qualquer comunidade religiosa que disputa fiéis, independente da identidade de fé em questão.
Na Igreja Católica isso ocorre entre ordens religiosas, entre grupos conservadores contra progressistas, e dentro da hierarquia de carreira na instituição.
Sendo uma instituição que deita raízes profundas na antiguidade e medievo, a Igreja Católica tem mais dificuldade para se tornar uma empresa ágil em nosso admirável mundo novo. Sua lentidão pode ser mortal num futuro próximo.
O mercado evangélico é obsceno nesse aspecto porque o protestantismo já nasceu moderno. Um galpão abandonado, algumas cadeiras de plástico, um microfone, alguém que domina a retórica e um punhado de miseráveis desamparados —que somos todos nós— e o business se põe em marcha.
Abrir uma igreja de sucesso é como abrir uma loja na rua onde se compra produtos baratos. Qualquer franquia de Jesus funciona. A miséria é algo que Deus seguramente distribuiu de forma democrática entre os homens e mulheres.
Há, contudo, nichos de evangelicalismo de luxo, usualmente, de classe média alta e de esquerda.
Entre judeus não é muito diferente, apesar de ser gourmetizado. Rabinos disputam seus fiéis a pau. Falam mal um dos outros, disputam poder e espaço dentro das sinagogas, assim como as almas a disposição.
Sinagogas buscam nichar seus fiéis a partir de questões ligadas as normativas da tradição: seus pais são judeus? Pode frequentar tal sinagoga. Sua mãe não é judia? Melhor ir naquela. E por aí vai.
A segmentação segue as linhas que determinam a validade da sua identidade judaica.
Terreiros de candomblé não fogem à regra. Pais e mães de santo falam mal de concorrentes, buscam roubar seus filhos de santo, equedes e ogãs, inventam fofocas sobre seus desafetos. Ao final, o que importa é quem fatura mais.
O budismo no Brasil ainda funciona como um mercado entre restaurantes com estrelas Michelin, coisa de riquinhos descolados.
Um comentário:
A transformação da fé em uma commodity é um fenômeno interessante e controverso. Por um lado, pode-se argumentar que essa mudança permite que mais pessoas tenham acesso à espiritualidade e se beneficiem dela de maneira mais eficaz. Por outro lado, pode-se questionar se a transformação da religião em uma mercadoria dilui a sua essência espiritual e reduz o seu valor a algo que pode ser comprado e vendido.
É inegável que muitas religiões estão cada vez mais agindo como empresas, investindo em marketing e publicidade para atrair fiéis e aumentar seus lucros. Mas é importante lembrar que a religião tem um propósito maior do que simplesmente gerar receita financeira. A fé é uma questão de conexão com o divino e de buscar um sentido para a vida, e essa experiência espiritual não deve ser reduzida a uma mera transação comercial.
Além disso, é preciso lembrar que as religiões também têm um papel importante na promoção do bem-estar social e da justiça. As igrejas e outras instituições religiosas podem ser uma fonte de apoio e ajuda para os mais vulneráveis da sociedade, e muitas vezes são responsáveis por iniciativas de caridade e de ajuda humanitária.
Em resumo, embora a transformação da fé em uma commodity possa ser vista como uma tendência preocupante, é importante lembrar que a religião tem um propósito mais amplo do que simplesmente gerar lucro. A espiritualidade é uma questão pessoal e deve ser tratada com respeito e cuidado, independentemente de como as religiões escolhem comercializá-la.
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