FOLHA DE SP - 25/10
Governo precisa sinalizar como vai parar de tomar mais empréstimos para pagar juros
Há um ano e meio escrevo esta coluna procurando variar, mas com frequência voltando a um tema: como viabilizar investimentos vultosos em áreas de alto retorno social, como saúde, educação, assistência social, para colocar o Brasil em um caminho de crescimento inclusivo, acelerado e sustentável e, ao mesmo tempo, e de forma complementar, como sanear as finanças públicas do país, fonte de incertezas paralisantes e de crises recorrentes.
Hoje, os dois objetivos estão ameaçados. O que fazer?
Sim, algumas reformas importantes foram feitas a partir de 2017. O quadro fiscal melhorou com a introdução do teto de gastos e com a aprovação da reforma da Previdência. No entanto, a despeito desses esforços, as fragilidades fiscais seguem nos assombrando, ameaçando a sustentação do teto, a única âncora fiscal que nos resta. Ademais, o clima geral de negócios piorou em face de sinalizações preocupantes do atual governo (que, por razões de espaço, não poderei detalhar aqui). Como se não bastasse, com a pandemia a situação social e fiscal se deteriorou ainda mais.
Após sete anos de déficits fiscais (primários) e mais de 10% de queda acumulada do PIB, a dívida pública se aproxima dos 100% do PIB. Mesmo respeitado o teto, o déficit primário só seria eliminado em cinco anos, o que não seria suficiente. A rolagem da dívida vem ficando cada vez mais difícil e o Tesouro está sendo obrigado a encurtar os prazos da dívida. As taxas juros de prazo mais longo exibem um elevado prêmio de risco. O dólar a R$ 5,60 grita o mesmo recado. Não se iludam com a bolsa. Estamos mal.
Claramente falta uma âncora fiscal mais robusta. Em bom português: o governo precisa sinalizar como vai parar de tomar mais empréstimos para pagar juros, pois essa bola de neve é insustentável. Chegou a hora de definir metas plurianuais para o saldo primário, que em quatro anos precisa passar de um déficit de 3% do PIB em 2019 para um superávit de pelo menos 3%, de forma a promover uma gradual queda da dívida pública. Essa segunda âncora fiscal nos serviu bem por 15 anos a partir de 1999 e precisa ser relançada.
Como chegar lá? Em vários círculos, inclusive no governo, prevalece a posição de que a tributação não pode aumentar. Penso diferente. Eliminar uma série de subsídios injustificáveis e reduzir a regressividade da tributação nos permitiria obter um espaço fiscal de pelo menos dois pontos do PIB. Segundo dados do Monitor Fiscal do FMI recém-publicado, uma recuperação modesta da economia brasileira ao longo de quatro anos melhoraria o saldo primário em cerca de dois pontos percentuais do PIB. Os dois pontos restantes, teriam que vir do lado dos gastos, com a ajuda de medidas como a PEC da flexibilização.
Muitos acreditam que essas medidas seriam recessivas. Ignoram o fator confiança. Ignoram que na raiz da profunda recessão que começou em 2014 estava um colapso fiscal de cerca de seis pontos percentuais do PIB. Relevam também 1999, quando ocorreu o inverso: fez-se um ajuste de quatro pontos e evitou-se um colapso da economia (à época a projeção de consenso no início do ano era de queda de 4% no PIB; acabou ligeiramente positivo).
Vejo tensões em torno da manutenção do teto no curto e no longo prazos. No curto prazo, há legítimas pressões para a prorrogação por mais algum tempo de gastos com assistência social. O teto é uma âncora. Embora boa em tese, como toda âncora, depende da resistência da corda, que no caso corre o sério risco de não aguentar a tensão.
Não recomendo a volta ao orçamento pré-Covid em apenas um ano. A economia vem se recuperando, mas segue fraca. Melhor seria deixar um pouco do ajuste para 2022, sem, no entanto, abandonar a meta de superávit primário de 3% do PIB para 2024.
Não ignoro que 2022 seja um ano eleitoral, o que tornaria pouco crível a promessa de qualquer aperto adicional naquele ano. Mas nas circunstâncias atuais é o caminho que nos resta, pois há sinais de que importantes reformas estruturais não parecem politicamente viáveis no curto prazo. E nem estamos falando dos estados, a maioria em crise, em alguns casos grave.
Num prazo mais longo, a aderência ao teto levaria ao final de seus sete anos a uma queda de cerca de três pontos percentuais do PIB no gasto federal (em função do gasto crescer menos que o PIB).
Quedas semelhantes terão que ocorrer também nos estados, onde gastos com folha de pagamentos e Previdência são insustentáveis.
Sem completar a reforma da Previdência e fazer uma reforma do RH do Estado que tenha impacto de curto prazo (inclusive sobre a qualidade dos serviços públicos), será impossível fazer o ajuste fiscal necessário e ,ao mesmo tempo, gerar recursos adicionais em maior escala para investir nas áreas sociais.
Mesmo sem as grandes reformas, seria possível com os ajustes propostos acima criar algum espaço para investimento, fazendo o teto crescer 1% ao ano acima da inflação. Dessa forma, ao final dos sete anos, o ajuste fiscal do governo como um todo ocorreria dividido em partes mais ou menos iguais entre cortes de gastos, aumentos de tributação e ganhos de receita com a recuperação. Pela ótica do gasto haveria uma redução do tamanho do Estado. Pela ótica da arrecadação haveria um aumento, voltando aos níveis de 2011.
Fazer as reformas para reforçar o SUS e a rede de assistência social seria a melhor opção. Não sendo possível, recomendo a opção acima.
Embora não recomendáveis, outras opções seriam possíveis. Apresento aqui os casos extremos: por um lado, com as reformas, usar as economias para reduzir a carga tributária; por outro, sem as reformas, seguir aumentando a carga para gastar mais ou para preservar privilégios. Essa última opção tem prevalecido há décadas no Brasil, com resultados modestos, a meu ver, bem modestos.
No âmbito da assistência social, seria sensato prorrogar modesta e temporariamente o auxílio emergencial, enquanto se aprofunda a discussão sobre o formato e a viabilidade de propostas mais permanentes. Importante notar que tanto a esquerda quanto o governo se recusam a considerar ajustes internos à rede de assistência, uma curiosa convergência. Fica claro aqui que a eliminação dos aspectos regressivos da tributação nos daria autoridade moral para uma discussão desarmada do
desenho da assistência social.
Claramente estamos diante de um caso extremo de cobertor curto. Não é possível ao mesmo tempo manter o teto atual, gastar mais com assistência social e SUS e não elevar a carga tributária. Não é possível esperar tanto tempo pelo ajuste fiscal. Se as reformas estruturais avançassem, a margem de manobra fiscal aumentaria. Idem com a eleição em 2022 de uma alternativa de centro.
Arminio Fraga
Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
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