Estamos esmagados sob a égide de espíritos homicidas, mas nem tudo está perdido
Sinto desconforto ao ter de escrever sobre certas vigarices políticas quando o caos da Covid-19 já engolfou Manaus e Belém, avizinha-se de Fortaleza e São Luís, preparando-se para tragar Rio e São Paulo. Desconforto e sensação de impotência. Como todo mundo. Nada disso está bem. É preciso, então, cultivar nosso jardim. Volto ao ponto mais adiante, depois de tratar do fim de uma quimera, de que o triunfo da morte é parte.
Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça ambicionando o papel de mocinho no duelo com Jair Bolsonaro. Um completo ausente em tempos de coronavírus, demitiu-se cinco dias antes de o Monitor da Violência apontar nova escalada de homicídios. O índice cresceu 8% no país —22% no Nordeste— em janeiro e fevereiro na comparação com igual período do ano passado. A incompetência é apanágio da mistificação.
Saiu atirando contra o chefe, com quem formalizou uma aliança de pornografia política explícita há meros 17 meses. O rompimento foi didático. Expôs sem filtro a natureza da Lava Jato e o seu poder de corromper instituições sob o pretexto de caçar corruptos. Foi aquele serpentário que nos relegou às trevas.
A aliança informal da operação com a extrema direita antecedia em muito o novembro de 2018, quando o então presidente eleito convidou o juiz para o cargo. No ministério, Moro condescendeu com o obscurantismo armamentista de Bolsonaro —e o resultado, tudo indica, já se traduz em corpos—, fez a defesa esganiçada e cruenta da licença para matar e se opôs ao juiz de garantias.
Os bolso-moro-fascistoides iam às ruas cobrar o emparedamento militar do Congresso e do Supremo, e o ministro se limitava ao sorriso de uma Monalisa sem mistérios. Apostava que Bolsonaro, cedo ou tarde, iria se confrontar com a sua biografia e a da família, e ele, Moro, herdaria o lamaçal de memes e a indústria de difamação. Afinal, o chefe havia sido tolo o bastante para entregar ao subordinado o controle do Papol (Partido da Polícia).
Na greve de setores da PM do Ceará, passou a mão na cabeça de criminosos amotinados e armados, apontando o seu cavalheirismo. Imperdoável e irredimível sob qualquer parâmetro civilizado que se queira! Mas eu o saúdo ao menos na derrocada. O rompimento foi útil à República. Crimes de acusado e acusador vieram à luz.
O rififi na extrema direita teve outro desdobramento positivo. Contribuiu para que o Supremo lembrasse, como quer Jacques Chevallier —citado pelo ministro Alexandre de Moraes ao impedir a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da PF— que “o objetivo do Estado de Direito é limitar o Estado pelo direito”. Estamos esmagados por uma montanha de mortos e sob a égide de espíritos homicidas, mas nem tudo está perdido. É preciso cultivar nosso jardim.
A exemplo de todo mundo, tenho repetido que um dia isso passa, mas exorto desde já a que façamos da memória uma arma de ajuste de contas com a história. Em benefício dos que estão por vir. E em memória dos que se foram. Pareceu barateamento de retórica jacobina? A proposta é muito objetiva. Se há óbices legais, e os há, para a criação de um Tribunal Penal Especial para punir os criminosos da Covid-19, nada impede que se instale um Tribunal Russell para os Crimes da Pandemia.
É preciso que se proceda ao menos à responsabilização moral daqueles que concorreram, por palavras, atos e omissões, para a morte dos brasileiros. A opinião é livre. Colaborar com atos, ou incentivá-los, que favoreçam a disseminação do vírus, precipitando o colapso no sistema de saúde, atenta contra o pacto civilizatório e os direitos fundamentais, especialmente dos mais pobres.
Que seja o mais plural e amplo possível. É preciso identificar os que ousaram substituir a ciência pela bruxaria ideológica, o direito à saúde pelo convite ao suicídio coletivo, o dever que tem o Estado de zelar pelo bem-estar dos cidadãos pela desídia calculada. Há momentos na história em que o mal se banaliza. E precisamos nos proteger, e às gerações futuras, da banalidade do mal. E dos embusteiros em pele de profetas.
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