Valor Econômico - 29/05
Os palavrões do presidente em reunião revelam um homem que só interage agredindo. Seu inimigo invisível tem o nome da onça que é menos onça do que deve ser
A reunião dos ministros, de 22 de abril, agora acessível a todos, foi convocada pelo general Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil, para o estabelecimento de um pacto em favor do Plano Pró-Brasil, de retomada do crescimento econômico. Um Plano Marshall brasileiro, explicou, aludindo equivocadamente ao plano americano que, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), assegurou o dinheiro para a recuperação e o progresso econômico dos países derrotados.
Braga Netto se referia à política do New Deal, que o presidente Franklin Roosevelt pôs em prática para recuperar a economia americana da grande crise econômica de 1929.
Seu plano é, no fundo, um plano de investimentos estatais em infraestrutura, para criar emprego e renda e seus multiplicadores. Um plano de desenvolvimento econômico com efeitos sociais diretos em oposição ao plano neoliberal de Paulo Guedes, que é um plano só de crescimento econômico, com efeitos sociais indiretos. E o objetivo político de eleger Bolsonaro em 2022, proclamou ele.
O plano de Braga Netto não parece limitado a tentar salvar o PIB e os lucros do grande capital, como é o de Guedes. O é, porém, de forma indireta. Induz a interiorização dos centros de decisão do desenvolvimento econômico. Há aí, em germe, um potencial neonacionalismo, oposto à geopolítica bolsonarista de satelização do Brasil em relação aos EUA.
A proposta de Braga Netto talvez se inspire, por ouvir dizer, na “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, livro de John Maynard Keynes, economista da Universidade de Cambridge, influente no pós-guerra. No Brasil, ideias que seriam reconhecidas mais tarde como antecipações do keynesianismo já haviam sido aplicadas, com grande êxito, pelo banqueiro brasileiro José Maria Whitaker, ministro da Fazenda do governo provisório de Getúlio Vargas, em 1930-1931.
A compra e queima dos estoques de café, sem mercado em decorrência da crise de 1929, manteve o fluxo de renda, e com ele os fazendeiros seriam pagos pelo café encalhado, e com o dinheiro pagariam os colonos pela colheita pendente. O que manteve a vitalidade do mercado e da indústria brasileira, já estabelecida desde o final do século XIX, com grande capacidade ociosa para substituir importações.
O que parecia ser uma reunião de bajuladores do presidente da República foi, na verdade, um questionamento da política econômica do ministro Paulo Guedes.
Guedes percebeu e pulou na hora. Repreendeu o general e disse que a alusão ao Plano Marshall revelava um despreparo enorme. A recuperação da economia deveria se basear em investimentos privados, e não em investimentos estatais. Impugnou Keynes. O general gaguejou e concordou. Não estava preparado para compreender o alcance e as implicações da proposta que fazia.
Dada a palavra aos presentes, houve algumas vozes na linha de questionamento de Guedes. A mais explícita foi a do ministro Rogério Marinho, economista: “Não podemos começar uma discussão com verdades absolutas e com dogmas...”.
Falou em favor de uma política de obras de infraestrutura, com inversão de recursos públicos. Questionou a preocupação de Guedes e de outros membros do governo de que, com a pandemia, “as coisas continuam como eram antes”. “Não são como eram antes, aqui e no mundo inteiro”, afirmou Marinho. E com razão. Uma nova ordem econômica terá que surgir inspirada em valores econômicos, mas também sociais, antineoliberais.
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, alertou Guedes: “Vamos ter que fazer algumas revisões de políticas públicas no Brasil (...), coloque aí a questão dos valores” (sociais), ordenou. Citou números de quilombolas, idosos, crianças e mulheres em abrigos. Aqueles que, em certa época, as esquerdas definiam como excluídos.
As intervenções de Bolsonaro ficaram desconectadas das outras falas. Pegava deixas no que os outros diziam e via em tudo prova de conspiração contra sua pessoa. Confessou medo. Antes da Presidência, quando ia ao médico, pedia que seu nome não constasse das receitas, para não ser envenenado. Vê inimigos por trás de tudo. “Tem gente deles plantada aqui dentro”, enfatizou.
Os palavrões pronunciados por ele na reunião são irrelevantes para a compreensão do que está se passando no escurinho do poder. Os palavrões de cunho fecal e sexual revelam um homem que só interage agredindo. Seu inimigo invisível tem um nome, que ele mencionou duas vezes: Jaguapoca.
Socializado na cultura caipira, no dialeto caipira encontrou nos remanescentes tupi que nele há a palavra que indica o que pensa desse temido inimigo:
Jaguapoca, a onça que é menos onça do que deve ser. Daí depreciar todos os que com ele não se alinham, onças que esturram, mas que são apenas m. e estrume.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "O Cativeiro da Terra" (Contexto).
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