É urgente que o imperativo do horror não se transforme em critério de combate à irresponsabilidade presidencial
Imagino que a geração que viveu a gripe espanhola, muito pior do que esta, teve uma vantagem sobre nós: o mundo era mais silencioso. Menos falação, menos profecias supostamente científicas, menos números de mortos jogados na nossa cara todo dia. E pra que isso?
É comum se dizer, ironicamente, que o jornalismo vive de sangue. A frase causa calafrios nos colegas que se veem como o braço armado da informação para o bem de todos.
A epidemia tem nos legado um fenômeno interessante, talvez, em parte como consequência de criarmos uma frente contra a irresponsabilidade do presidente da República. Por outro lado, como já tive a chance de dizer, muitas pessoas têm um gozo específico com o fim do mundo, ao ver os outros com medo.
Temo que seja chegada a hora de fazermos uma reflexão sobre o risco de a mídia embarcar numa polarização típica da nossa era, que é a da política histérica. Se por um lado a irresponsabilidade de Bolsonaro é gritante, nem por isso a verdade está do lado da histeria gerada na população. Não devemos dar espaço aos apocalípticos nesses dias, nunca será pouco repetir essa máxima. Pessoas que falam que morrerão milhões ou que 2020 será todo trancado em casa, não devem sair do seu buraco, mesmo que com milhões de discípulos.
Sabemos do valor pedagógico e político do medo. O filósofo fiorentino Maquiavel (1469-1527) já dizia no seu “O Príncipe” que o medo é um instrumento poderoso na “gestão de pessoas”, como está na moda dizer.
Muitos argumentam que alimentar o medo ajuda as pessoas a respeitar o isolamento. Verdade em grande medida. Mas, como dizia o próprio fiorentino, só medo, ou medo demais, tende a desesperar as pessoas e o tiro sair pela culatra.
Nunca, nos últimos tempos, a responsabilidade da mídia profissional foi tão grande. Devemos isolar o vírus da histeria alarmista. E isso, infelizmente, não parece estar acontecendo. É claro que não estamos falando de todos os veículos ou de todos os profissionais.
Mas, é urgente que o imperativo do horror não se transforme em critério de combate à irresponsabilidade presidencial, nem de audiência, muito menos de cliques ou likes. Se as mídias sociais podem seguir aos milhões qualquer um, lembremos que outros milhões seguem Bolsonaro, e nem por isso os julgamos “sábios” no combate à epidemia. Quantidades nunca foram sinônimo de verdades.
A ciência é lenta, protocolar, metódica, o que para Descartes (1596-1650) era signo de humildade. Sua temporalidade não agrada a fúria da massa nas redes. Suas exigências não vão ao encontro da ansiedade dos nossos tempos. Suas respostas não são sempre tão evidentes. Sua mensagem, às vezes, parece coisa de elite: para poucos, nem sempre fácil de entender, muitas vezes fica aquém da necessidade de muitos de ter um guru a seguir.
A mídia hoje pode cometer um pecado capital: dar voz aos geradores de histeria. Esses, provavelmente ganharão muito dinheiro no futuro próximo, vendendo pânico e alimentando empresas de seguro pouco cautelosas.
Como esta Folha tem bem demonstrado, é fundamental dizer às pessoas que pouco sabemos com certeza de fato sobre a letalidade ou o comportamento epidemiológico do vírus. Dito em outras palavras: precisamos de tempo pra conhecer esse ilustre desconhecido. Esse tempo é calculado em cima das mortes, do combate a elas, do medo, do combate ao medo e dos cuidados para não matar de vez a economia.
Os debates científicos nunca foram feitos de forma tão rápida. A comunidade científica tem de resistir à tentação que há poucos anos se abateu sobre a magistratura: gozar com as luzes da ribalta. É evidente que esse juízo não se aplica a toda a comunidade científica, assim como não se aplica a toda a comunidade de jornalistas, assim como nunca se aplicou a toda a magistratura.
Não devemos dar ouvidos àqueles que recolhem milhões de seguidores vendendo o horror, como uma espécie de Greta Thunberg piorada.
O que se aprende de válido na repetição contínua dos números de mortos? Nada. Por que afogar as pessoas no desespero? Simples: está nascendo o mercado do terror da epidemia.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
Um comentário:
Excelente sua seleção de artigos, Murilo!
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