O Brasil erigiu no passado um regime algo sui generis, que Sérgio Abranches denominou de “presidencialismo de coalizão”. Quando se pensa nas democracias europeias, em geral elas são regimes parlamentaristas. Os EUA são presidencialistas, mas são um país bipartidário. Aqui nós temos um regime que, formalmente, é presidencialista. Ao mesmo tempo, no cipoal da ordem de 30 partidos que temos em nosso manicômio partidário, é evidente que o presidente da República, sozinho, pode muito pouco.
O problema principal é a ausência de responsabilidade que isso gera. Pensemos numa situação que se repetiu N vezes na História recente: o partido X fazia parte da base do governo, emplacava indicações políticas, era da aliança que tinha eleito o presidente da República de outro partido etc. Apesar disso, na hora de votar um projeto impopular, alguns parlamentares do partido votavam contra o governo e, na eleição seguinte, criticavam este pela proposta que tinha apresentado. E nada mudava na relação entre esses parlamentares e seu partido ou entre este e o governo. Por quê? Porque, aos olhos do eleitor, os candidatos eram o deputado A ou B, e não os integrantes da agremiação partidária X ou Y. Em outras palavras, durante décadas, foi possível a muitos políticos usufruírem das benesses do poder, sem arcar com o desgaste que o exercício deste implica, tendo o bônus de ser governo, deixando o ônus para o presidente.
A situação que hoje vivemos é a oposta, porque o que se espera é que deputados de partidos que, estando no governo nas gestões Dilma e Temer, por vezes votavam contra, votem a favor de causas por vezes vistas como impopulares no governo Bolsonaro, estando fora dele. É uma equação singular. Tudo indica, não obstante, que a reforma da Previdência poderá de fato ser aprovada pelo Congresso. Tenho minhas dúvidas, porém, de que esse arranjo político curioso funcione no longo prazo.
Esse regime operou durante mais de três décadas com imperfeições, pela falta de comprometimento pleno do conjunto das bancadas que formavam parte da coalizão governante com a agenda proposta pelo presidente. Eram arranjos de conveniência, com vantagens para ambas as partes, mas sem a funcionalidade plena esperada num regime parlamentarista — onde a distinção entre quem está no governo e na oposição é clara e quem está no governo vota com este ou, caso contrário, o governo cai.
Agora, a possível inadequação é de outra índole: o problema não é mais ter deputados que, estando no governo, votam contra ele; e sim a natureza estranha de uma situação onde se pretende que os parlamentares votem em favor do governo, sem ter nada em troca. Uma coisa é o que está acontecendo no caso da Previdência, onde, após anos de descalabro, talvez tenha “caído a ficha” de que o enfrentamento da questão é inadiável. Outra coisa é o que acontecerá na votação dos projetos do dia a dia. Está longe de haver garantias de que o governo terá êxitos sucessivos em outros temas que forem à votação.
No fundo, a grande pergunta —que vale para qualquer presidente brasileiro na situação atual — é: como funciona um país presidencialista em que o presidente se elege com pelo menos 50 % dos votos, mas o seu partido no Congresso tem apenas 8% ou 10% dos parlamentares? A resposta lógica creio que deveria ser mudar de regime e adotar o parlamentarismo. Este não pode, porém, ser adotado após o jogo ter começado, o que significa que só poderia valer a partir de 2023. Por isso, se houver um plebiscito sobre a matéria, ele deveria ocorrer em outubro de 2021, depois das eleições do ano que vem. Se vencer o presidencialismo, nada mudaria. E, se este for derrotado, o presidente Bolsonaro comandaria em 2022, com plenos poderes, a transição rumo ao novo regime. Nada menos que 66 % da população atual não tinham nascido ou não tinham idade para votar a última vez que o país se manifestou sobre o tema, em 1993. Pode ser razoável recolocar o assunto em pauta.
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