O GLOBO - 16/07
Presidente renunciou ao papel reservado ao chefe do governo no presidencialismo brasileiro
O Congresso vai aprovar, tudo indica, uma reforma da Previdência suficientemente robusta em seus efeitos fiscais. Jamais uma mudança dessa complexidade foi acolhida por mais de três quintos dos parlamentares sem o envolvimento pessoal do presidente da República.
Jair Bolsonaro renunciou ao papel reservado ao chefe do governo no presidencialismo brasileiro, qual seja o de coordenador do jogo político. Recusou-se a formar uma coalizão estável e majoritária para garantir a governabilidade, como é a regra em todas as democracias caracterizadas por sistemas multipartidários, em que o governo não faz a maioria nas eleições legislativas.
Nesses casos, as coalizões funcionam mediante trocas legítimas e republicanas, em que o chefe do governo compartilha o poder, enquanto os partidos aliados assumem o compromisso de apoiar a agenda oficial.
Acontece que o presidente confunde coalizão com clientelismo e corrupção. Chegou a sugerir que correria o risco de ir para a cadeia se adotasse o toma lá dá cá de governos anteriores. É como se a corrupção revelada pela Operação Lava-Jato constituísse um padrão no Brasil, o que está longe de ser verdadeiro. Ademais, ele se ocupa cotidianamente de temas irrelevantes, como se ainda estivesse em campanha eleitoral.
Dois de nossos melhores cientistas políticos, Sérgio Abranches — autor da teoria do presidencialismo de coalizão — e Carlos Pereira, têm alertado para os riscos que o presidente corre ao decidir liderar um governo minoritário. Em artigo recente, Abranches foi enfático: “A coalizão se tornou um imperativo da governabilidade”.
Além da opção por um governo minoritário, Bolsonaro parece ter entendido que seu papel na reforma da Previdência seria apenas o de enviar o projeto ao Parlamento, aqui e acolá apelando para o “patriotismo” dos parlamentares. Não se dá conta de que o exercício do “patriotismo” não é relevante para a sobrevivência política deles. Em alguns momentos, agiu para desidratar a proposta, como na defesa de privilégios de policiais.
Como explicar, mesmo assim, a aprovação da reforma da Previdência? Esse paradoxo decorre da combinação virtuosa de quatro fatores:
1) O governo não consumiu tempo na formulação da proposta. A PEC 06, da reforma, tem base no projeto Paulo Tafner-Armínio Fraga;
2) A maioria da sociedade se convenceu da necessidade da reforma, fruto das discussões decorrentes de medida semelhante no governo Temer;
3) As preferências da maioria dos parlamentares convergiram para o apoio à reforma. Eles perceberam que o fracasso os incluiria na lista dos perdedores;
4) A tarefa de agregar tais preferências foi exercida, na ausência de Bolsonaro, pelo presidente da Câmara. Pode vir a ser um caso raro de vitória por persuasão, pois Rodrigo Maia não dispõe dos recursos de poder para conquistar votos, como nomeações para cargos e liberação de emendas parlamentares.
O êxito não garante, todavia, que essa combinação se reproduza em outras mudanças, o que pode indicar riscos de derrotas futuras. Não fora isso suficiente, Bolsonaro parece não dispor de filtros que o protejam de ações equivocadas, como as de atos flagrantemente inconstitucionais, rejeitados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso.
Tradicionalmente, a Casa Civil é a fonte básica desses filtros. A ela cumpre escrutinar documentos a serem assinados pelo presidente, avaliando conveniência e oportunidade. Verifica a compatibilidade de medidas propostas com a agenda do governo, particularmente com a política econômica. Checa a constitucionalidade e as remissões à legislação.
Há sinais de ineficiência na Casa Civil, o que pode ter decorrido da anunciada “despetização”. O órgão pode ter perdido, assim, pessoal experiente e qualificado para realizar o exame adequado de documentos levados à assinatura do presidente. Não parece agora existir uma figura semelhante à do lendário Professor Carvalho, que serviu a mais de um governo. Nenhuma das falhas de Bolsonaro passaria pelo seu crivo.
Pode-se imaginar, alternativamente, que os erros decorrem de puro voluntarismo do presidente, que imporia sua vontade a um grupo submisso de auxiliares. Seja como for, um governo minoritário e sem filtros eficazes é propenso a derrotas, ao fracasso na gestão e, no limite, à interrupção do mandato.
Maílson da Nóbrega é economista e foi ministro da Fazenda
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