Não é papel do Supremo legislar e, menos ainda, legislar em matéria penal.
Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) avaliar a chamada inconstitucionalidade por omissão. Em determinadas situações, a inexistência, por exemplo, de um ato legislativo pode representar a violação de uma norma constitucional. Nesses casos, o Supremo, como guardião da Carta Magna, tem o dever de notificar o Poder competente para que corrija a omissão.
“Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”, diz o art. 103, § 2.º da Carta Magna.
Atualmente, o plenário do STF julga dois processos nos quais se discute se existe ou não omissão do Congresso Nacional por não ter editado até agora lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. Na quinta-feira, 23/5, formou-se maioria favorável ao reconhecimento da omissão legislativa. O julgamento deverá ser retomado no dia 5 de junho.
Os seis ministros que votaram até agora foram, no entanto, muito além da atribuição constitucional do STF, que é dar ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias. Seguindo o relator, ministro Celso de Mello, todos os votos foram no sentido de enquadrar os atos de homofobia e de transfobia nos tipos penais previstos para os crimes de racismo, até que o Congresso Nacional aprove lei específica sobre a matéria. Isso significa que o Poder Judiciário está assumindo o papel de legislador em matéria penal, o que extrapola suas competências constitucionais.
É incontestável que os atos de homofobia e de transfobia são agressões diretas à dignidade da pessoa humana. O Estado, e muito especialmente o Poder Legislativo, não deveria fechar os olhos a tais ações de ódio e violência. No entanto, não é papel do Supremo legislar e, menos ainda, legislar em matéria penal.
A Constituição estabelece, em seu art. 5.º, que “não há crime sem lei anterior que o defina”. No entanto, de acordo com os seis ministros, deverá haver no País um crime que foi definido não por uma lei, mas por decisão judicial. Tal extravagância fere as garantias e liberdades constitucionais, bem como o princípio da separação dos Poderes, pilar do Estado Democrático de Direito.
O ímpeto legislativo de alguns ministros do STF ficou ainda mais evidente por uma questão levantada na sessão do dia 23 de maio. O Senado comunicou ao Supremo que a Comissão de Constituição e Justiça havia aprovado no dia anterior, em caráter terminativo, um projeto de lei que inclui os crimes de discriminação e de preconceito contra orientação sexual ou identidade de gênero na Lei 7.716/1989, que trata dos crimes de racismo.
O ministro Marco Aurélio, cujo entendimento foi acompanhado pelo ministro Dias Toffoli, sugeriu suspender o julgamento dos dois processos relativos à homofobia, para aguardar o pronunciamento final do Legislativo. Se o Senado aprovou em caráter terminativo um projeto de lei sobre o tema, não se pode dizer que o Congresso seja omisso. Menos ainda caberia ao STF, num contexto tão evidente de atividade legislativa no sentido de criminalizar os atos de homofobia, editar uma lei sobre a mesma matéria, como se quisesse não apenas preencher omissão – o que já estaria fora de suas competências –, mas se adiantar ao Congresso. A maioria dos ministros votou, no entanto, pela continuidade do julgamento das ações.
É dever do Poder Legislativo estar atento à realidade social, numa constante avaliação da legislação vigente, também para que a Constituição não fique desprotegida. Nessa tarefa, o STF tem o importante papel de alertar o Congresso sobre eventuais omissões. Mas mesmo nos casos em que se constate uma inércia abusiva do Legislativo, isso não é motivo para o Supremo criar novos crimes por analogia. A omissão de um não dá direito ao abuso de outro.
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