O Estado de S.Paulo - 26/06
Quando o juiz é parcial, o processo se torna uma farsa montada para atender à exigência legal
A advocacia está passando por um período marcado pelo desrespeito à profissão, pelo não reconhecimento de sua imprescindibilidade e pela incompreensão do seu papel. Eu diria estar havendo uma preocupante crise de identidade da profissão em face da sociedade e das próprias instituições do Estado.
Os advogados estão sendo vistos, na área penal, como colaboradores do crime, quase cúmplices ou coautores. Quem assim pensa ignora, ou finge ignorar, que nós não defendemos o crime, mas, sim, somos porta-vozes dos direitos e das garantias constitucionais e legais dos acusados.
Zelamos pelo cumprimento dos princípios que, insertos na Constituição federal, emprestam legitimidade à atuação punitiva do Estado e impedem que este venha a cometer excessos que possam atingir a dignidade da pessoa levada a julgamento.
Esses direitos e garantias são por nós defendidos não só em nome dos acusados, mas, sim, de qualquer cidadão. Não se deve esquecer que o crime é um fenômeno social, razão pela qual ninguém em sã consciência poderá afirmar que jamais cometerá um delito ou se verá acusado injustamente de tê-lo praticado. Na verdade, a realidade do sistema penal está repleta de exemplos de inocentes que se sentam nos bancos dos réus. Ou, ainda, há uma infinidade dos que, embora culpados, se tornam alvo de acusações mais graves do que a sua efetiva responsabilidade.
Em quaisquer dessas situações, todos os cidadãos brasileiros – repita-se – poderão ser protagonistas da cena judiciária. Pois bem, nesta hora, precisarão ser defendidos e o serão por nós, advogados, os únicos habilitados a exercer a defesa técnica perante os tribunais. E saibam: sem defesa, não haverá possibilidade da propositura de ação penal nem da instauração válida do respectivo processo. E o advogado formulará a defesa com base nos fatos e no rol daqueles referidos princípios constitucionais, necessários para que seja realizada a justiça no caso concreto. Dentre esses princípios devem ser realçados o da ampla defesa, o do contraditório, o do devido processo legal, o da igualdade de tratamento entre as partes e o da imparcialidade dos juízes.
Saliente-se, ainda, que os advogados são imprescindíveis não só na esfera penal. Quaisquer conflitos de interesses na área cível, envolvendo direito de família, direito de propriedade, societário, tributário e todos os demais ramos do Direito, só podem ser resolvidos pelo Poder Judiciário, que, sendo inerte, é provocado pelo advogado que exerce a capacidade postulatória, com exclusividade, em nome de terceiro. Portanto, ele só é movimentado quando por nós acionado.
Pois bem, essas breves considerações foram feitas em face de recente revelação de manifestações de um juiz e de um procurador sobre suas atividades. O advogado, essencial a todo e qualquer processo, foi absolutamente esquecido, desprezado, como figura menor da relação processual. Até para simular alguma legitimidade, os diálogos ou mensagens poderiam ter mencionado a outra parte ou o seu advogado. Não, nenhuma consideração, nem para criar um simulacro de legalidade a uma chocante situação de ilegalidade.
Lamentavelmente, para alguns membros do Judiciário o advogado atrapalha. Estes juízes nos consideram desnecessários. Apenas nos toleram porque a Constituição exige a nossa presença para a administração da justiça.
No entanto a advocacia está, mesmo, em crise, conhecida e lamentável crise. Saberemos superá-la, como outras já foram superadas, segundo nos mostra a história da profissão. Mais grave, porém, é a crise de legitimidade que atinge o sistema judiciário e o próprio Estado Democrático de Direito, agora posta à luz do dia.
A revelação das mensagens trocadas entre um magistrado e um procurador federal mostra-nos que de uma só penada a Constituição federal foi rasgada e o sistema de proteção dos cidadãos investigados ou processados foi violentado.
Nós, advogados, e as centenas de homens e mulheres que se transformaram em acusados nos últimos anos já intuíamos e fortemente desconfiávamos de que se instalara na Justiça Penal brasileira uma relação promíscua entre alguns magistrados e alguns membros do Ministério Público. Promiscuidade no sentido da mistura, da confusão, da intromissão e da desordem. Infelizmente, passamos a conviver com autoridades que se arvoram em guardiães da sociedade e combatentes messiânicos do crime. Para desempenharem a sua missão, entendem que os fins justificam os meios e se afastam do ordenamento jurídico e da promessa inicial que fizeram de respeito à Constituição e às leis do País.
O exemplo recentemente vindo a público bem ilustra essa situação, que contém aberrante ilegalidade.
Antes de explicar o assombroso atentado às normas e aos princípios penais, presto um esclarecimento. A atividade jurisdicional é exercida por juiz, advogado e membro do Ministério Público. Constituem uma pirâmide, na qual o juiz ocupa o ápice e os outros personagens estão na sua base, rigorosamente no mesmo nível. O juiz deve manter equidistância das partes, bem como tratá-las de forma igualitária. Dessa forma estará mantendo o requisito essencial para o correto desempenho de suas funções: a sua imparcialidade.
Agora esclareço a anomalia acima referida. Quando as normas que regem o relacionamento dos componentes da pirâmide são quebradas, instalam-se a confusão, a intromissão indevida, a desordem, enfim, a promiscuidade que conspurca a imparcialidade do juiz.
Ao aconselhar, sugerir estratégias e medidas a serem adotadas, o magistrado demonstra tendência favorável a uma das partes. Dá sinais de já estar com a sua convicção formada. Em tal hipótese, as provas e os debates processuais serão inúteis. O processo se transforma numa farsa montada para atender às exigências legais, nada mais.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista
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