domingo, junho 30, 2019

‘A população é a grande fiadora da estabilização’ - ENTREVISTA COM PÉRSIO ARIDA

O GLOBO - 30/06

Um dos criadores do Plano Real, economista vê condições mais favoráveis a reformas econômicas que na época da concepção da nova moeda

Por Cássia Almeida


RIO — Um dos pais do real , o economista Persio Arida vê a moeda como conquista da população brasileira, que se tornou “fiadora da estabilidade”. Sobre os desafios de hoje, vê a reforma da Previdência que tramita no Congresso na direção certa, mas identifica paralisia nos investimentos à espera dela.

Ex-presidente do BNDES, ele acredita que o país não precisa mais de um banco de fomento tão grande e diz que há uma “retórica falsa” na afirmação do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que nunca houve um governo liberal no Brasil.

Após 25 anos, a população já considera o real uma conquista?
Certamente, hoje virou quase um bem público. O governante que permitir que a inflação seja alta será punido nas urnas. Não é à toa que os 10% de inflação no começo no segundo governo Dilma foram, do ponto de vista de erosão de apoio popular, um dos fatores determinantes. Hoje, claramente, a mensagem aos governantes e aos políticos é muita clara se você permitir a volta da inflação. A população é a grande fiadora do processo de estabilização.

E que não se conseguiu fazer?
O que deu errado infelizmente foi a Previdência que perdemos por um voto. Brasil poderia ter um quadro muito diverso se tivesse aprovado aquela reforma que já estabelecia idade mínima.

E hoje, como vê o Brasil?
Hoje não tem oposição relevante. Mesmo sem articulação política, tem uma liderança no Congresso a favor das reformas, e o país está muito mais consciente dos desafios da Previdência do que estava naquela época. As tentativas, embora malsucedidas do governo Temer, aumentaram enormemente a consciência do país do problema. Cenário internacional está muito mais favorável, não tem o desafio do controle da inflação. Como um todo, é situação muito mais tranquila do que aquela vivenciada antes.

Por que a economia não cresce?
Nosso crescimento atual está abaixo do normal por dois fatores. Certamente Argentina tem um efeito negativo no setor real. Tem um segundo efeito que a ênfase na reforma da Previdência como tudo ou nada, percepção de que o Brasil pode acabar. De um lado ajuda na aprovação, por outro lado gerou em todo empresariado local e externo uma atitude de esperar para ver. Colocou o fluxo de investimento em compasso de espera. Vamos ver o que vai sair, qual é o número que vai sair. O efeito no ânimo empresarial de investir é claramente negativo.

Aprovando a Previdência, os investimentos voltam?
Muitas vezes, há o diagnóstico de que a limitação do crescimento é na demanda. A taxa de juros está alta demais, a política fiscal está contracionista demais, e, portanto, o Brasil não cresce por falta de demanda. Eu acho esse diagnóstico fundamentalmente errado. Acho que há espaço para a redução da taxa de juro sem dúvida, mas não é isso que vai colocar o Brasil numa rota de crescimento acelerado. Os desafios estão do lado da oferta> insegurança jurídica, abertura comercial e financeira, aumento de concorrência, mudança de leis de garantia para diminuir o spread bancário, reforma tributária. São essas agendas que aumentam a produtividade do país. O ministro Guedes (Paulo Guedes, da Economia), decidiu _ o tempo dirá se a decisão está correta ou não _ de focar 100% da energia no começo na Previdência. Mas Previdência não dá ganho de produtividade nenhum. Ela pode estabilizar a expectativa sobre a dívida pública.

O foco na Previdência é ruim?
Claro que isso aumenta a chance de aprovar a reforma, mas retarda a discussão das reformas estruturais. No piloto automático, o crescimento brasileiro infelizmente é baixo, não é tão baixo como este ano indica. O Brasil cresce 2%, 2,5% ao ano, o que é insuficiente para absorver o estoque de desemprego. Quando se cresce aceleradamente é que as oportunidades aparecem. Tornar o Brasil menos desigual com crescimento baixo é praticamente impossível. Colocar o Brasil numa rota de crescimento acelerado é fundamental, de 3,5%, 4%, via ganho de produtividade e imigração.

Nossa produtividade está estagnada há décadas, esse crescimento deve demorar.
Sim, é verdade, mas tem muita coisa para fazer. Tem mundo externo favorável, uma quantidade de capital externo que pode ser atraída enorme, áreas que muito férteis, produtivas, como agricultura de exportação e pré-sal.

Como avalia a reforma da Previdência?
Podemos discutir detalhes, como querer afetar o BPC (Benefício de Prestação Continuada, auxílio dado a idosos e portadores de deficiência de baixa renda) quando boa parte da classe média usa o Simples indevidamente, isso é injusto socialmente. O Congresso tirou a capitalização, mas não é nenhum drama, é muito melhor repensar FGTS e os programas de previdência complementar do que um programa novo de capitalização. Ela vai na direção correta, não tem como enfrentar o problema sem equacionar idade mínima. Tem um lado bom também que o ministro se afastou das ideias deles durante a campanha. Ele sugeria uma privatização maciça para cobrir o buraco da Previdência e uma capitalização como no modelo chileno desde agora. Uma ideia errada, porque a privatização maciça não vem. Primeiro que Bolsonaro está longe de ser privatizante, para começo de conversa, segundo porque é um processo lento. Mas o ministro deu uma meia volta volver e resolveu fazer uma reforma convencional, mas uma boa proposta de reforma. Seria muito bom se os estados entrassem.

E a articulação política do governo no Congresso?
Tem uma diferença enorme. Durante o real, tinha o ministro da Fazenda que era o Fernando Henrique mais Edmar Bacha que negociavam as reformas. Pós Plano Real, o ministro virou presidente e costurava a articulação que sustentava a enorme quantidade de reformas modernizantes do Plano Real. Hoje, você tem uma situação meio paradoxal. Há um presidente inapetente ou que se mostra incapaz de fazer uma articulação na prática, o seu próprio partido perdido, mas para sorte do Brasil, há lideranças na Câmara e no Senado comprometidas com as reformas. Pela primeira vez, estamos desafiando a tese do presidencialismo de coalizão. Você ter um presidente sem capacidade de articulação, mas um Congresso que toma a si as reformas, é uma circunstância inédita. Na política não há vácuo. O Executivo não propõe, o Congresso propõe, o que está acontecendo com a reforma tributária.

Ministro Guedes falou que Plano Real tinha deixado de lado o ajuste fiscal e que o Brasil nunca teve um governo liberal.
Demorou até chegar a um superávit fiscal, mas finalmente chegou a 2,75% do PIB, em 1999. A ideia que o Brasil nunca teve um governo liberal é completamente falsa. No Plano Real, nós defendíamos as reformas modernizantes que são necessárias para sustentar o plano. Ninguém defendeu do ponto de vista abertamente ideológico. Nós somos liberais, portanto queremos fazer isso. Claro que a esquerda rotulou, a vida inteira fui chamado de neoliberal. O impulso extraordinário das privatizações, da criação das agências reguladoras, da abertura da economia, do superávit fiscal, da tentativa, apesar de não ter dado certo, da reforma da Previdência, a reforma administrativa que Bresser Pereira fez. Inúmeros exemplos aqui são reformas de cunho liberal. Toda vez que alguém tem uma retórica messiânica, do tipo eu estou começando uma nova era no país, desconfie.

E o BNDES?
Obviamente tem que devolver os recursos do Tesouro, isso equivale a ter que vender ativos, créditos. Há um fluxo de dinheiro de impostos que vai via FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), está previsto na Constituição, é verdade, mas não faz nenhum sentido lógico que alguém atrele determinado imposto a um empréstimo de um banco de desenvolvimento. É um unicórnio. Têm distorções, independentemente da função do BNDES, que precisam ser enfrentadas. O BNDES não devolve o principal dos empréstimos, é como se tivesse um título público perpétuo. Têm lá R$ 260 bilhões, R$ 270 bilhões a devolver para o FAT. O banco tem que captar recurso a mercado como qualquer um. Outra questão é qual é a função do banco, que volta ao tema da produtividade, do ponto de vista da segurança jurídica, do sistema regulatório, concessões e avanços na Lei Geral de Garantias de empréstimos. Nesse cenário, a economia prescinde de empréstimos estatais.

O BNDES sempre teve o papel de financiador da infraestrutura.
Uma coisa é o passado onde não existia empréstimo de longo prazo. Hoje há debêntures incentivadas, fundos de infraestrutura no mundo inteiro, o que falta é uma estruturação jurídica que permita alavancar com segurança projetos de infraestrutura. Se houver isso, não há limitação mais.

Digitalização e moeda digital crescendo exponencialmente. Quais efeitos?
Uma coisa é um processo de digitalização entrando para valer no setor financeiro. Esse processo é bem-vindo. Só tem vantagens. Outra coisa é moeda digital. O bitcoin é um ativo especulativo. A moeda digital como está é irrelevante. O avanço do processo de digitalização, não, esse é extraordinário. Não só no setor financeiro, nos governos também.

Esse movimento é capaz de baixar os juros no Brasil?
Tudo que aumenta produtividade ajuda. Certamente com mais produtividade, o spread bancário diminui. É um movimento firme, tem recursos, tem dinheiro, é um processo que avança independentemente da taxa de crescimento do país, tem um ganho de eficiência muito grande.


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