O Estado de S.Paulo - 17/05
Ninguém sabe quando a reforma da Previdência poderá ser votada. E nem que abrangência e potência fiscal afinal terá
Entre a eleição e a posse de Jair Bolsonaro, os mais propensos ao autoengano tentaram se convencer de que, ao contrário do que se temia, o novo presidente saberia dar a devida prioridade ao que de fato importa. E relegaria a segundo plano a maior parte das propostas extremadas que brandira na campanha eleitoral.
Enquanto os “adultos” cuidariam das reformas, da retomada do crescimento e da redução do desemprego, os “bolsonaristas de raiz” ficariam restritos a uma pequena caixa de areia, entretidos com as possibilidades da agenda de costumes, da flexibilização do porte de armas e de outras diabruras mais, sob o olhar atento e instigante de tio Olavo.
Não é preciso muita argúcia para já se dar conta de quão fantasiosos mostraram ser tais devaneios. A caixa de areia está longe de ter sido relegada a segundo plano. Vem assumindo proporções cada vez maiores. E absorvendo grande parte das atenções do presidente. Vem operando como potente gerador de cizânia no núcleo do governo. E tumultuando o ambiente político, num momento em que o Planalto deveria estar focado no delicado esforço de tramitação da reforma da Previdência.
Em nenhuma manifestação sobre a reforma, feita até agora, Bolsonaro conseguiu externar um décimo da convicção e do entusiasmo que exalava, na semana passada, ao anunciar a assinatura do seu impensado decreto de flexibilização de posse e porte de armas no país.
Sobram razões para lamentar o despropósito desse decreto. Basta, aqui, ter em conta um aspecto que tem recebido menos atenção do que merece: os alarmantes desdobramentos da concessão indiscriminada de porte de armas a caminhoneiros.
Faça o leitor um esforço para rememorar as cenas dantescas da greve de caminhoneiros de 2018. E tente imaginar como poderá ser a próxima greve, com grande parte dos caminhoneiros armados. Muitos deles, até os dentes. É difícil que o Congresso e o STF compactuem com tamanha inconsequência. São contrassensos que apontam para inevitáveis atritos com o Legislativo e o Judiciário, fadados a redundar em novos e custosos desgastes políticos para o governo.
Não pararam por aí os desatinos recentes da caixa de areia. Tendo insistido em nova escolha estapafúrdia de ministro da Educação, o Planalto colhe agora, pouco mais de um mês depois, uma conflagração completamente desnecessária do sistema universitário, que voltou a agitar as ruas, deu novo alento à oposição e acirrou os ânimos no Congresso. A tentativa de impedir que o ministro fosse convocado para prestar esclarecimentos na Câmara custou ao governo mais uma humilhante derrota. De 307 a 82.
Há até quem tema que a conflagração possa ter sido deliberada, pois não falta nas alas mais radicais do governo quem esteja convicto de que a militância bolsonarista só voltará a vicejar em ambiente conflagrado. As declarações descomedidas do presidente, anteontem, em Dallas, só contribuíram para reforçar esse temor.
Seja lá como for, o tumulto gerado pela hipertrofiada caixa de areia em que essas alas operam vem dificultando em grande medida o avanço do que deveria ser a agenda prioritária do Planalto. E o espaço de manobra para condução da política econômica vem se tornando a cada dia mais exíguo.
A promessa de um círculo virtuoso, alimentado pela perspectiva de rápida aprovação do programa de reformas, vem cedendo lugar a expectativas cada vez mais pessimistas sobre o crescimento da economia e a queda do desemprego.
A tramitação da reforma da Previdência, num quadro de resistência do Planalto a qualquer forma de presidencialismo de coalizão, continua cercada de enorme incerteza. Ninguém sabe ao certo quando a reforma poderá ser votada. E nem que abrangência e potência fiscal afinal terá.
É preocupante que, na sua dramática corrida contra o tempo, em meio a clara deterioração do quadro fiscal e rápido estreitamento do espaço de manobra da política econômica, o Planalto continue dando força ao processo desestabilizador que vem sendo gestado pelas alas mais radicais do governo.
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