Vizinhos vão votar no governo da crise nova ou no governo da velha crise
Além dos capítulos finais da ruína da Venezuela, a notícia mais importante da política sul-americana de 2019 são as eleições argentinas.
Outra vez em ruína, os hermanos podem até recolocar os peronistas no poder, derrubar o "neoliberalismo" e mudar a temperatura ideológica do subcontinente. Ou não.
Sim, é uma perspectiva antolhada pela conversa brasileira, embora a eleição no vizinho deva mesmo ter algum efeito por aqui, político ou até econômico, caso o voto argentino tenha desdobramentos financeiros desastrosos.
É quase certo que o presidente Mauricio Macri tente a reeleição.
Ao final de seu governo, a economia terá encolhido uns 3%; os salários, ainda mais. A inflação dobrou, para os mais de 50% ao ano de agora. A queda do PIB deve ser menor neste ano (1,5%, ante a baixa de 2,5% de 2018), mas, na prática, o sentimento da crise será pior (a demanda doméstica vai cair mais).
Parte da esquerda brasileira se diverte com o fracasso do "neoliberal" Macri, eleito por uma coalizão de centro- direita e que se diz liberal.
Mas, seja lá o que ele estivesse fazendo entre fins de 2015 e 2017, ajuste econômico é que não era.
Macri optou por um conserto gradual das contas públicas e deu ênfase ao controle da inflação, com juros altos, e à volta da Argentina ao mercado financeiro internacional, depois de 15 anos de banimento, dado o calote monstro de 2001.
Bem. O déficit primário mal caiu, o déficit total aumentou (por causa dos juros altos), o peso continuou valorizado, não houve controle da inflação. O governo voltou a se financiar com dívida externa, que cresceu brutalmente.
O déficit externo dobrou de 2015 para 2018. Ainda em meados de 2018, o Banco Central financiava o governo.
Parece uma receita velha de parrilla argentina, populismo cambial e endividamento externo. Sim, houve alguma "reforma", que não deu para o gasto.
Em fins de 2017, o governo elevou a meta de inflação, buliu com o BC e os preços começaram a disparar; houve secas e safras horrendas.
Quando veio o sururu no mercado financeiro internacional do início de 2018, com perspectiva de alta de juros e fuga de capitais, a Argentina estava quebrada. Pediu US$ 56 bilhões ao FMI.
Arrocho mesmo veio agora. O déficit primário deve cair quase 4% do PIB de 2017 a 2019. Os juros estão na lua. Mas a inflação não diminui.
Em abril, Macri baixou um pacote eleitoreiro, com congelamento de preços de bens essenciais e de tarifas públicas, auxílios para aposentados e um "Refis" para pequenas e médias empresas. O congelamento dura até a semana da eleição, em outubro. O BC tenta segurar o preço do dólar, vital para a reeleição. O FMI engoliu esse churrasco de melancia heterodoxo, por medo da "esquerda".
Apesar de tudo, nas pesquisas Macri está só a cinco ou oito pontos de distância da ex-presidente Cristina Kirchner. A peronista deve ser candidata, caso não seja abatida por escândalos e por ataques de outros peronistas.
Pode haver uma terceira via relevante, com Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia dos peronistas Eduardo Duhalde e Néstor Kirchner.
Cristina é tão de esquerda quanto Macri fez ajuste liberal. A gente pode usar esses rótulos, mas a situação argentina, da política à estrutura da economia, é muito mais complicada, faz décadas. Um tanto surpreendente é que Macri possa vencer, com um fracasso na prática, um arrocho na mão e uma ideia liberal na cabeça.
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