domingo, março 24, 2019

Bolsonaro e sua estranha diplomacia sem Estado - ROLF KUNTZ

O Estado de S.Paulo 24/03

Presidente, no Brasil, é chefe de governo e de Estado. Falta explicar os termos ao presidente



Depois de prestar vassalagem a seu ídolo e modelo Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro foi a Santiago com a anunciada intenção de enterrar a quase esquecida Unasul, uma irrelevante invenção bolivariana, e participar da criação de um bloco proposto pelo colega chileno Sebastián Piñera. Nenhuma das duas visitas tem relação clara com interesses de Estado. As duas foram motivadas por objetivos ideológicos e até religiosos, sem conexão com os atributos essenciais da entidade conhecida como República Federativa do Brasil. Essa entidade é laica e sua Constituição garante, além da “livre manifestação do pensamento”, a “liberdade de consciência e de crença”. É uma aberração, portanto, a ideia de uma diplomacia cristã, proclamada pelo embaixador Ernesto Araújo, ocupante formal do posto de ministro de Relações Exteriores. Na tradição do Itamaraty, violada algumas vezes no passado e simplesmente ignorada no atual governo, a diplomacia se faz em nome do Estado.

O chanceler e seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro, estão muito longe dessa tradição. Isso foi comprovado de forma indisfarçável na visita presidencial a Washington. Na Casa Branca ele falou de um Brasil engajado com os Estados Unidos. Não falou de afinidades ou simplesmente de interesses comuns, mas de engajamento, numa condição de clara subordinação. Além disso, a afinidade, se fosse mencionada, seria entre países ou ente governantes? A hipótese correta, nesse caso, é a segunda.

O presidente brasileiro confunde a relação entre ele e Trump com a relação entre os dois Estados soberanos ou mesmo entre os povos do Brasil e dos Estados Unidos. O presidente Trump nem sequer teve a maioria dos votos populares. Perdedor nesses votos, ele foi escolhido por um colégio eleitoral constituído a partir de resultados obtidos em diferentes Estados, como determina a regra eleitoral americana.

O presidente brasileiro parece desconhecer esses dados ou menosprezá-los. Em sua visão, os valores trumpianos devem representar os da verdadeira cultura americana, embora ele mesmo, Bolsonaro, nem se expresse dessa maneira. Longe dessas e de outras distinções, ele ignorou sua posição de autoridade estrangeira ao defender a construção de um muro na fronteira com o México e as ideias de Trump sobre imigração – temas de disputa entre americanos.

Como se isso fosse pouco, ainda afirmou, depois da reunião na Casa Branca, acreditar “piamente” na reeleição do presidente Trump. Um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, mais poderoso que o chanceler Araújo, havia posado para fotos, alguns meses antes, com um boné de campanha do presidente americano. Acompanhando o pai em Santiago, esse filho profetizou ser necessário o uso da força para afastar o ditador venezuelano Nicolás Maduro. Em Washington, Bolsonaro pai evitou dizer, depois da conversa com Trump, se apoiará ou deixará de apoiar uma intervenção armada na Venezuela. Quem discordar da palavra vassalagem pode substituí-la por algum termo talvez mais preciso. Mais difícil será mudar os fatos e a história da visita a Washington.

A mesma preocupação essencialmente ideológica e religiosa marcou a ida a Santiago. O próprio Bolsonaro reconheceu estar morta há muito tempo a Unasul (União de Nações Sul-Americanas), símbolo irrelevante do bolivarianismo e da diplomacia chavista, apoiada pelo brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Mas como poderia deixar de mencionar essa experiência fracassada e inócua?

Para Bolsonaro, o Prosul (Foro para o Desenvolvimento e Progresso da América do Sul), associação proposta pelo presidente chileno, Sebastián Piñera, deverá promover “democracia, liberdade e prosperidade”. O próprio Piñera usa linguagem mais cautelosa, nega o objetivo de substituir ideologicamente a Unasul e fala de um “foro de diálogo, de encontro e de colaboração”, desenhado para valorizar “a integração e o desenvolvimento de todos”.

Os objetivos e formas de operação do Prosul ainda são pouco claros. Além disso, a integração sul-americana mal começou. As experiências mais bem-sucedidas, até agora, são as de associação com fins econômicos. A Aladi abriu caminho para a constituição do Mercosul e, mais tarde, da Comunidade Andina e da Aliança do Pacífico, fundada por Chile, Colômbia, Peru e México. O Mercosul começou bem, mas encalhou por causa da aliança desastrosa entre o kirchnerismo e o lulismo.

Os presidentes Mauricio Macri, da Argentina, e Michel Temer, do Brasil, ensaiaram um esforço de reparação e de recuperação do bloco, mas pouco avançaram. O governo Bolsonaro nunca mostrou interesse em continuar esse trabalho. Ao contrário, tem tratado o Mercosul como irrelevante e isso foi comprovado, mais uma vez, pela programação das duas primeiras viagens do presidente brasileiro ao exterior.

Os interesses particulares e ideológicos do kirchnerismo e do lulismo quase liquidaram o Mercosul. Governantes mais pragmáticos, mais competentes e mais comprometidos com interesses de Estado poderiam reanimar esse bloco e iniciar outros esforços de integração regional – entendidos, de preferência, como criação de condições para uma inserção global eficiente e competitiva. Nenhum governo pode esgotar esse tipo de tarefa. Empreendimentos desse tipo envolvem compromissos de Estado, mantidos acima das mudanças de governos e partidos.

No caso do Brasil, o avanço nessa direção dependeria de uma recuperação da tradição diplomática. Seria preciso restabelecer a diplomacia como atividade de Estado. Isso dificilmente será feito enquanto o presidente for incapaz de distinguir os valores e objetivos de grupos e de partidos dos valores e interesses da República.

Num regime como o brasileiro, o chefe de governo é também chefe de Estado. O presidente Bolsonaro tem mostrado escasso conhecimento e quase nenhum preparo para qualquer das duas funções típicas da Presidência. Se essa é a condição do chefe, como esperar uma diplomacia exercida em nome de interesses de Estado?

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